sábado, 23 de agosto de 2014

Estantes Emprestadas [8] - Qual é o problema da Fantasia?


A convidada deste mês é uma pessoa especial. Vinda do Estante de Livros, que é, arrisco-me a dizer, o mais famoso blog literário português, a Célia é uma espécie de mãe blogger para muitos de nós. Entre pioneira e lenda, sou capaz de estar a exagerar ligeiramente, mas a admiração que tenho por ela não é pouca.

Visitem o blog dela para ficarem a conhecê-la melhor. Leitora ávida, mãe (literalmente) e blogger, a Célia é uma referência e, no meu caso pessoal, um dos motivos para ter criado este blog. Uma das inspirações que fermentaram na minha mente e me deixaram com vontade de o fazer, digamos assim.

Com isto tudo, é fácil de imaginar a minha satisfação quando ela me convidou a escrever uma crónica para o blog dela, sobre a desgraça das leituras obrigatórias na escola, e ainda mais por ver que é visitante regular aqui do QAENCEC. Pois bem, chegou a altura de retribuir o favor! Nunca a conhecia pessoalmente, é certo, mas li as opiniões dela durante tanto tempo que não tive dificuldade em reconhecê-la neste texto. O que lhe pedi, sendo ela fã de Fantasia, foi uma reflexão sobre o género e o preconceito que existe contra ele. O resultado está à vista. Obrigado!

P.S.: as fotos são dos livros da Célia, tiradas pela própria. Fantásticos!

Um pouco de história

O meu primeiro contacto com mundos fantásticos na literatura aconteceu-me por volta dos 17 anos, quando por ocasião do Natal me foi oferecido o primeiro volume da série Harry Potter, pouco tempo após ter sido publicado em Portugal (ainda tinha a capa com a coruja!). Lembro-me de ter devorado o livro, mas infelizmente só recebi o 2.º volume no Natal seguinte. Estava a adorar a série, tão diferente de tudo o que tinha lido até então - que, diga-se em abono da verdade, não tinha sido grande coisa para além de alguns livros juvenis como a série "Uma Aventura" ou livros da Alice Vieira. Em 2001, estava a contar receber o 3.º volume da série e o embrulho em forma de livro que estava debaixo da árvore deixou-me com boas perspetivas. Só que o que lá estava não era mais um volume da série "Harry Potter", mas sim "A Irmandade do Anel", reeditado naquele Natal porque tinha acabado de estrear o respetivo filme. Nunca tinha ouvido falar em Tolkien nem naqueles livros (só tive internet mais tarde, malta!), por isso torci o nariz àquele presente que o meu pai decidiu oferecer-me. Comecei a lê-lo no dia seguinte e lembro-me exatamente de tudo o que senti durante os 3-4 dias que demorei a terminá-lo. Vivi na Terra Média, absorvi cada palavra de Tolkien como se fosse um bem essencial e escusado será dizer que não descansei enquanto não pus as mãos em cima de todos os livros dele que estavam publicados por cá. Li, reli e voltei a ler aqueles livros e hoje recordo essa fase da minha vida como provavelmente a melhor em termos literários, aquela que me transformou em leitora e que lançou as bases de tudo. Pode dizer-se que foram os livros e o autor certo na altura certa, abrindo-me os horizontes para a literatura de um modo geral, e para a fantasia em particular. A partir daí, fiquei sempre muito mais atenta aos livros fantásticos que iam aparecendo, e alguns tornaram-se favoritos (Juliet Marillier, George R.R. Martin, Robin Hobb and so on). Por isso, se me perguntarem qual é o meu género literário favorito direi, sem grandes hesitações: a literatura fantástica.



O que é que a fantasia tem

Não é fácil explicar os motivos que me levam a gostar tanto deste tipo de literatura. Penso que, acima de tudo, é uma questão de predisposição pessoal. Conheço pessoas que gostam de ler mas que têm extremas dificuldades em visualizar mundos imaginários, ou que pura e simplesmente descartam a fantasia como género menor, fruto de preconceitos vários (questão que desenvolverei abaixo). Falando por mim, gosto, em primeiro lugar, do mundo de possibilidades que abre: tudo é possível, não há limites à imaginação. Vivemos numa época de mudança constante, de evolução tecnológica, onde tudo acontece e passa rapidamente; penso que a fantasia, no seu sub-género mais comum (vertente medievalista), tende a oferecer o leitor um escape para o stress do dia-a-dia, permitindo-o viajar no tempo e viver num mundo completamente diferente do seu. Isto, aliado à presença de pessoas (ou seres!) com problemas reais, boa escrita e enredos inesquecíveis, faz com que a fantasia se torne, para mim, num género irresistível. Mais, parece-me mesmo um dos poucos géneros literários em que as fronteiras entre literatura infantil/juvenil e literatura para adultos são mais ténues.


A fantasia como género menor?

Tenho a ideia que a maioria dos críticos literários profissionais pura e simplesmente descarta a fantasia como género menor, muito pouco literário. Se comprarmos revistas literárias ou lermos suplementos de jornais onde se fazem críticas literárias, raramente encontramos livros fantásticos. Porquê? Porque, penso eu, estas pessoas escrevem para elites e as elites não leem fantasia. Sei que isto é generalizar e que há várias exceções, mas diria que a principal diferença entre a fantasia e a dita literatura é o enfoque das narrativas: enquanto que na fantasia, normalmente se dá primazia ao enredo, na literatura o habitual é que o estilo e as personagens estejam no centro das atenções. Portanto, a fantasia seria, à partida, um género menor para os críticos pela sua falta de qualidade literária. O "problema" é que este género é atualmente muito popular, o que se reflete em vendas de livros e audiências nas adaptações telivisivas/cinematográficas. As pessoas gostam de fantasia e a extrema popularidade de autores como Tolkien ou George R.R. Martin obrigou a que merecessem atenção para além da popular. Penso que estes autores foram impostos à elite literária (um pouco contrariada, talvez) precisamente por serem amados por tanta gente e, se não são considerados "literários" são, pelo menos, mais bem aceites que outros. Há outros autores dentro da ficção especulativa que conseguiram, de certo modo, utrapassar as fronteiras dos géneros em que escrevem (lembro-me da Ursula K. Le Guin ou da Margaret Atwood), talvez por causa da sua escrita mais "literária". Aliás, saindo um pouco da ficção especulativa, recorde-se os prémios ganhos por Hilary Mantel, dentro de um género (ficção histórica) que normalmente não é premiado ao mais alto nível. Portanto, identifico dois motivos para que alguns autores do género sejam mais bem aceites nos círculos literários mais restritos: extrema popularidade e/ou fantasia com maior enfoque na escrita e nas personagens.



Em jeito de conclusão

A fantasia, tal como qualquer outro género, tem livros muito bons, livros assim-assim e livros maus. Há na fantasia histórias muito bem escritas, que lidam com temas atuais, com personagens bem desenvolvidas e empáticas e enredos cativantes e bem delineados. Admito que muitos leitores já tenham experimentado o género e não seja, de todo a sua praia, mas também acredito que muitos deles provavelmente pegaram no livro errado e não voltaram a tentar. Por isso, leiam, experimentem: é bom sair fora da nossa zona de conforto, abrir horizontes. Seja em relação à fantasia ou a outro género qualquer.

2 comentários:

Célia disse...

Obrigada pela oportunidade ;)

Rui Bastos disse...

Ah, thank you!