sábado, 9 de agosto de 2014

Blindness



Argumento: Don McKellar
Director: Fernando Meirelles
Principais actores: Julianne Moore, Mark Rufallo, Daniel Glover, Alice Braga e Gael García Bernal

Opinião: Depois de ler o Ensaio sobre a Cegueira, é óbvio que era apenas uma questão de tempo até ver este filme. A literatura portuguesa costuma ter fama de não ser filmável, e este livro em particular era o campeão desse adjectivo. Os livros de Saramago não são fáceis de ler, quanto mais de adaptar!

A minha curiosidade era imensa. Seria possível? Seria realmente possível? Eu estava optimista, pois lembrava-me sempre da notícia em que Saramago assistia ao filme e chorava no fim. Ele era um homem difícil de agradar, e um escritor bastante orgulhoso da sua obra, portanto isso só podia ser bom sinal.

Não me enganei. Ainda com o livro fresco na memória, aquilo a que assisti foi a uma das melhores adaptações cinematográficas de livros que conheço. Enquanto adaptação está ao nível de O Perfume, baseado na obra de Patrick Süskind, e na trilogia de O Senhor dos Anéis, baseado na obra de Tolkien. Enquanto filme, no entanto, é bastante superior ao primeiro, ainda que não chegue aos calcanhares do épico de Middle-Earth.


O começo é igualzinho. Bom presságio! Todos os pormenores batem certo, uma tendência que se verifica durante o resto do filme, desde a angústia do primeiro cego ao não conseguir ver o semáforo, até ao acto reflexo de espreitar pelo buraco da porta.

Houve uma coisa que não percebi muito bem, e que não sei se hei-de louvar ou não. O primeiro cego e a mulher são asiáticos, e há algumas personagens negras e latinas, sem que no livro haja qualquer indicação disso. Uma tentativa de introduzir diversidade cultural? É verdade que adiciona uma questão racial à premissa, já de si complexa e com várias camadas, mas não me parece muito necessário.

Mas o resto é impecável: Mark Rufallo, mais conhecido ultimamente pelo seu papel de Hulk, está fantástico como o médico, e Julianne Moore, como mulher do médico, começou por não me agradar, mas é só nas primeiras cenas, em que tem um ar mais estouvado e fútil do que devia. Melhora ao longo do filme e rapidamente é a mulher fria e implacável do livro.


A consistência do filme é tremenda, não há momentos mortos nem desvios narrativos, há uma história para contar, uma grande alegoria executada com mestria, apoiada na excelente matéria prima que é a obra de Saramago.

Os momentos esporádicos de puro brilhantismo são vários, como a cena em que todos começam a cegar, bastante semelhante ao que acontece no livro, que mesmo sendo curta, é tremendamente exasperante. Tem o mesmo papel de pôr o enredo a andar que no livro, servindo de grande ponto final na introdução.

Depois é preciso notar a predominância do branco em todo o filme. Afinal, a cegueira é branca, e esta cor tem grande destaque no primeiro terço do filme, com pelo menos dois propósitos bastante óbvios: como complemento a essa cegueira e como contraste à sujidade que vem depois. Pelo meio há uma série de flashes brancos, bastante ominosos e arrepiantes em vários momentos.


Já fechados no manicómio, acontece mais um daqueles momentos brilhantes, com a mulher do médico a percorrer um corredor que vai mudando lentamente com a passagem do tempo. É aqui que a brancura geral do filme dá lugar à imundície, à sujidade de um mundo de cegos contidos num espaço fechado e deixados ao abandono. Muito bom.

Outro momento fantástico é ver o primeiro cego e a sua mulher a conversarem, sentados num banco de jardim, tudo muito normal, quase um traço de esperança no meio do pânico e do desespero que grassava no manicómio... Só que à frente deles está uma parede de cimento. O simbolismo é óbvio e poderoso.

A partir da segunda metade começam os momentos assustadores e verdadeiramente perturbadores. Até agora há só desespero e o descambar de uma sociedade, mas quando um cego sai da linha de novos inquilinos do manicómio e vagueia, completamente perdido, a pedir ajuda, e leva um tiro que o deixa morto, começa o horror.


O tiro desencadeia o pânico colectivo, e as pessoas começam a correr e a empurrar para entrar. Morrem pessoas, esmagadas debaixo dos pés dos seus iguais. Depois é preciso uma pá para enterrar os mortos, e é arrepiante ver o soldado a guiar a mulher do médico, divertido como se de um jogo se tratasse.

É então que se dá o momento decisivo, aquele pormenor em que se atinge o fundo mais fundo e nós percebemos, em grande parte graças à actuação fantástica de Bernal, que já não há nada a fazer. A personagem de Bernal – a tal que passou curiosamente a ser espanhola – declara-se a si próprio como o rei da ala três e, como tem uma pistola, declara-se também como o guardião e distribuidor da comida.

O riso maníaco que se faz ouvir, acompanhado de palmas e urros dos seus companheiros, é arrepiante. E daí não falta muito para aquela que é a pior cena do livro, de tão intensa e perturbadora: o rei da ala três exige mulheres como pagamento por comida.


Já tendo lido o livro, sei exactamente o que vai acontecer agora, mas isso não torna a situação mais confortável ou menos desagradável de ler. O único pormenor agradável é quando as mulheres vão para a ala três, em fila, mãos nos ombros umas das outras, e há um plano em fundo branco que imita a capa do livro em português. Fenomenal.

Nada do que vem a seguir é fenomenal, tirando as actuações envolvidas. É uma cena tão desconfortável de ver como de ler, e é de louvar a forma como todos os actores cumprem os seus papéis de forma exemplar, uns assustadores, outras submissas.

Depois disto não se pode descer mais, o que se confirma. Não passa muito tempo até o manicómio se incendiar e todos fugirem, embora o grito da mulher do médico, completamente na escuridão, a anunciar a súbita liberdade, não soe tão agradável como devia. Afinal, são um grupo de cegos num mundo de cegos, está tudo perdido, que esperança podem ter? Não vão estar melhores a deambular pelas ruas do que sossegados no manicómio, o que, mais uma vez, se confirma. O mundo é apenas uma prisão maior.


Mas mesmo nos momentos finais, há felicidade. Instalado o grupo em casa do médico, ver as mulheres nuas na varanda, felizes por estarem a chuva e sentirem a água a escorrer por elas abaixo, é tocante. O êxtase quando a visão começa a voltar, aos poucos e poucos a cada uma das personagens, é contagioso.

E depois o final, em que a mulher do médico vai até à varanda, continua a ser arrepiante e nem sei bem dizer porquê. Talvez por resumir em vinte segundos um excelente filme e uma excelente obra, talvez por fazer pensar que tudo continua perdido, mas é de qualquer forma um fim digno deste filme: excelente.


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