sábado, 30 de agosto de 2014

Literatura de rua



Lembro-me como se tivesse ontem de aprender a ler. Do espanto que foi quando as letras começaram a fazer sentido. Foi uma sensação fantástica de descobrir um mundo novo espalhado por todo o lado.

O espanto que foi quando se aperceberam que aprendi rápido, e já lia legendas de filmes e textos virados ao contrário mais rápido do que era suposto. Não demorei muito a dizer aos meus pais que já não precisavam de me ler histórias e a pegar eu próprio nos livros, que já conhecia tão bem.

Eventualmente, deixei de me esforçar. Não era preciso. Como acontece com praticamente toda a gente, ler tornou-se um acto inconsciente. Já não via letras, via palavras. Desde aí que tento ver letras de vez em quando, mas não consigo. Já não sei o que é olhar para textos e ver algo misterioso e insondável.

Essa sensação deve ser parecida à de olhar para um texto em russo, ou em japonês, ou outra língua qualquer com um alfabeto diferente, mas não é a mesma coisa. Consigo delimitar palavras, identificar frases, perceber, pelos sinais de pontuação, a estrutura do texto. Com tempo e exemplos suficientes consigo apanhar padrões e até perceber algumas coisas!

Mas antes de aprender a ler não havia nada disso. Não sei descrever essa sensação, mas devia ser de uma estranheza profunda. Ou então era um encolher de ombros para descartar o assunto sem sequer pensar nele.

Quando isso acabou, no entanto, as palavras ganharam um poder incrível. E naquele momento em que ler se tornou natural... Bem, aí nunca mais parei. Para onde quer que olhasse, lia qualquer coisa. Uma das coisas que eu mais gosto de fazer quando estou na rua, é ler tudo o que encontro. Até nomes de loja. Foi quando descobri a literatura de rua.

Já pensaram nisso? Que vão a ler enquanto caminham na rua. Experimentem. Cada nome de loja, cada papel de publicidade, cada graffiti... Histórias! Os cafés têm com frequência nomes bastante engraçados, já tentaram imaginar de onde vêm? Os graffitis, espalhados um pouco por todo o lado, podem ser grandiosas obras de arte ou nomes gatafunhados num canto. Os primeiros são autênticos livros da vida de quem os fez, têm uma mensagem; os segundos demonstram irresponsabilidade e vontade de ser irreverente, mas incapacidade de ter criatividade. Ou talvez sejam mais subtis que os outros.

Da próxima vez que passarem por uma loja e tiverem que especular sobre o nome por faltarem duas ou três letras no anúncio, pensem na razão. É uma loja antiga, talvez passe de geração em geração, lentamente a definhar por ser ultrapassada pelos concorrentes, mais modernos? Será uma loja obscura com sucesso num nicho que não quer saber do anúncio em cima da porta, pois os clientes já fazem da visita à loja parte da rotina? Ou é uma loja recente, vandalizada? Porque é que foi vandalizada? Azar? Motivos pessoais?

As possibilidades são tantas... E ninguém parece prestar atenção. Pensem nisso da próxima vez que saírem à rua, chateados por terem que interromper a vossa leitura para ir comprar pão, ou para ir trabalhar, ou visitar um familiar chato como o caraças: continuem a ler. É só ter atenção.

sexta-feira, 29 de agosto de 2014

The Two Towers [2/2] (The Lord of the Rings #2)


Autor: J.R.R.Tolkien


Opinião: E aconteceu o que eu tinha previsto. Depois de meio livro a seguir o resto da Irmandade, a segunda metade segue exclusivamente Frodo e Sam. Eugh.

Felizmente não os acompanha SÓ a eles, já que durante a maior parte do tempo têm Gollum/Sméagol com eles, e encontram humanos já perto dos portões de Mordor.

Além disso, aparece a Shelob! Hurray! Quem é não gosta de ver uma aranha gigante, descendente de uma aranha ainda mais gigante, ambas intrinsecamente malévolas e poderosas, a tentar comer dois pequenos hobbits? Diversão para toda a família!

Pronto, já passou, agora vou-me concentrar. Isto não foi tão doloroso de ler como eu estava à espera. A prosa de Tolkien é fantástica, especialmente as suas descrições. Os diálogos são ornamentados até mais não, mas pelo menos fazem algum sentido, tendo em conta o mundo criado pelo autor. A história parece não avançar muito, já que de repente voltamos atrás no tempo até pouco depois do que acontece no início do livro.

Para piorar a situação, o que se segue são páginas e páginas de... Frodo e Sam a caminharem, perdidos, abatidos, com dúvidas e aterrorizados, ocasionalmente com Gollum a ser espectacular por perto (o desgraçado é sempre espectacular, nem sempre está é por perto).

Há momentos interessantes, como quando passam pelos pântanos repletos de mortos - cena igualmente memorável no cinema, é uma das que me lembro melhor - ou quando enfrentam Shelob. O encontro com humanos, nomeadamente com Faramir, o chefe do grupo e irmão de Boromir, é muito inteligente. Dá uma grande densidade emocional a tudo o que sabemos que se passou mas Frodo e Sam não, ao mesmo tempo que permite uma pausa na narrativa para mostrar que mesmo em terras semeadas pelo caos e pela destruição, como as que rodeiam Mordor, se podem encontrar aliados e amigos.

No fundo é um raio de esperança para os dois hobbits cada vez mais desencontrados com eles próprios. Uma justificação adicional para continuarem a carregar o fardo de que estão encarregues, e não desistirem.

É claro que ainda assim, a melhor parte desta segunda metade é sem sombra dúvida o Gollum, que é uma das melhores personagens que já vi na literatura. A sua história conturbada moldou-o de uma forma bastante vincada, e é possível ver a criatura impiedosa e o ser ingénuo em instantes contínuos. Com uma linguagem corporal muito expressiva e uma maneira de falar bastante única, Gollum deve ser, ainda por cima, a única (ou uma das muito poucas) personagem moralmente ambígua do princípio ao fim.

Pode-se argumentar que não há nenhuma ambiguidade, pois ele não segue os maus nem os bons, segue o Anel, mas a verdade é que as suas acções demonstram um desejo de redenção e um de vingança. Aliás, Tolkien era tão fã de ver as coisas a preto e branco que fez de Gollum uma criatura única e completamente diferente de tudo o resto. Além disso anuncia a sua ambiguidade de forma bastante explícita nas conversas entre Gollum, a parte má, e Sméagol, a parte menos má boa.

Por agora a história ficou numa encruzilhada, mas vai-me saber bem uma pequena pausa deste universo antes de prosseguir. As várias conclusões necessárias vão de certeza precisar de ser digeridas com calma e paciência. Mas não devo demorar muito a pegar no terceiro livro, que isto é demasiado bom!

quinta-feira, 28 de agosto de 2014

Estantes!

Não percam as minhas estantes no Estante de Livros, aproveitem e leiam a minha crónica que por lá anda e depois regressem e leiam a da Célia que por cá anda, publicada há uns dias. No fim de tudo isto, caso tenham vivido numa gruta escura durante os últimos anos, passem a seguir o Estante de Livros com atenção!

quarta-feira, 27 de agosto de 2014

O Soldado do Inverno #2 (Universo Marvel #2)


Argumento: Ed Brubaker
Arte: Steve Epting, Mike Perkins, Frank D'Armata, Michael Lark, Lee Weeks, Stefano Guaudiano, Rick Hoberg, Matt Milla
Tradução: João Miguel Lameiras

Sinopse

Opinião: O primeiro volume foi bom, mas este desce a fasquia. E não é muito justo, porque é aqui que tudo se descobre realmente, e que a personagem do título, o Soldado do Inverno, tem o seu merecido destaque. Mas a estrutura narrativa, principalmente no início, deixa muito a desejar.

No primeiro livro havia um equilíbrio entre a história agora e as duas épocas presentes nos flashbacks. Este volume introduz um vaivém temporal que em nada beneficia a história.

Imaginem a história a começar com uma situação que não vos diz nada, em que as personagens fazem referências a coisas que vocês não conhecem, como se fossem evidentes. E que depois de algumas páginas, aparece um "três dias antes" a explicar esses acontecimentos. Agora imaginem que isso acontece durante mais de metade do livro, de forma confusa e repetitiva.

Pois é. Não fiquei muito agradado. Mas depois de digerir esse truque narrativo, a história desenrola-se a um ritmo que não é completamente desagradável, e a arte mantém a qualidade do livro anterior. O que é relevante neste livro são os desenvolvimentos do enredo e a caracterização das personagens.

Nestes campos é que se pode ver como Brubaker construiu uma história de espionagem interessante, que não é demasiado complicada, ou retorcida, mas que cativa. O ritmo algo lento, tendo em conta que se trata de uma história de super-heróis, assenta bem, e não é todos os dias que se vê um Capitão América próximo de ser moralmente ambíguo.

Além disso podemos vê-lo a lutar contra algo que não percebe e que, à partida, não são realmente vilões: a sua memória e a sua mente. É que no meio de tudo isto, Brubaker consegue fazer com que o Capitão sinta as consequências da sua história conturbada, desde a sua utilização como arma de guerra até ao facto de ter perdido algumas décadas, congelado.

Pela primeira vez desde que me lembro, vejo um Capitão América verdadeiramente assustado e, acima de tudo, velho. Tudo isso pesa na forma como ele lida com tudo o que se passa à sua volta, e isso é algo que nem sempre se vê nestes universos.

Por fim, o Falcão e o Homem de Ferro aparecem, mas têm papéis bastante insignificantes. Não posso deixar de reparar que o Soldado do Inverno parece ser uma personagem demasiado interessante para se perder por aqui, e a Marvel parece concordar, já que aparece como pertencendo à próxima geração dos Vingadores, nas imagens divulgadas.

Resumindo tudo, este livro não é tão bom como o anterior, mas conclui a narrativa de forma satisfatória e leva a uma avaliação bastante positiva da história como um todo.

segunda-feira, 25 de agosto de 2014

O Soldado do Inverno #1 (Universo Marvel #1)


Argumento: Ed Brubaker
Arte: Steve Epting, Michael Lark, John Paul Leon, Frank D'Armata, Tom Palmer
Tradução: João Miguel Lameiras

Sinopse

Opinião: Sem repetir a minha opinião sobre a personagem do Capitão América, faz sentido começar este texto por dizer que nunca fui muito à bola com ele. Isto é importante porque eu gostei bastante deste livro.

É que tirando toda a fama e visibilidade que os super-heróis andam a ter, em grande parte graças à super-franchise cinematográfica da Marvel, eu sempre gostei de ler BD e especialmente BD's de super-heróis.

A sensação de continuidade e de universo partilhado tem um grande peso em mim, e a Marvel e a DC há muito tempo que oferecem exactamente isso, de forma completamente massiva. Ou seja, poucas foram as coisas que me deixaram mais satisfeito do que descobrir que a Marvel ia passar isso para filme, seguida pela DC alguns anos depois.

No meio disto tudo, nunca consegui aturar muito bem o Capitão América. Mas esta história de espionagem está tão bem contada que tive que me render. A verdade é que a parte mais ampla (e cósmica) do universo Marvel é aqui metida um pouco a martelo, porque não faz falta absolutamente nenhuma.

A decisão de matar um dos principais e mais icónicos vilões de sempre do Capitão América é arriscada, mas acertada. O que raio pode andar por aí que seja pior que isto? Quem é tem poder suficiente para ter eliminado esta ameaça com tanta facilidade?

Interessante, não é? Digo-vos que a coisa só melhora, ao longo de uma narrativa não muito complicada, mas com pistas para algo mais, em que passado e presente se misturam para dar ao leitor a compreensão total da história.

A forma como isto é feito, com flashbacks em tons diferentes, conforme a época, está muito boa. Brubaker consegue assim contar uma história muito consistente, apoiado por uma arte muito sóbria e competente, ainda que longe de brilhante.

O meu maior problema nem é com a história, é com o livro, que tem uma estrutura que me tem vindo a aborrecer noutros do mesmo género: no início vem uma introdução que conta a história toda. Eu não sei quem foi o génio que pensou nisto, mas os comics da Marvel NOW! que andam a sair (X-Men, Vingadores, Homem-Aranha) têm textos do mesmo estilo no fim de cada revista. Porquê? Porque se é para falar da história, com detalhes, faz-se depois da história estar lida. Não antes.

É que assim sinto-me enganado. "Olha, uma introdução, vai explicar como é que isto se insere na continuidade, vai dar algumas dicas para perceber alguma coisa fácil de passar despercebida a olhos pouco treinados!" e depois é um texto que, por muito interessante que seja, acaba por contar a história toda.

Para compensar, este livro traz uma história no fim, um interlúdio, que é absolutamente fantástico, sobre um quase-pormenor do enredo que tem um papel relativamente secundário e pouco tempo de antena, mas que brilha aqui naquilo que é a melhor parte de todo o volume!

Sem dúvida uma história que aconselho, especialmente se tiverem curiosidade relativamente ao filme que tem o mesmo nome. Eu já o vi, e é igualmente bom! Agora toca a ler.

sábado, 23 de agosto de 2014

Estantes Emprestadas [8] - Qual é o problema da Fantasia?


A convidada deste mês é uma pessoa especial. Vinda do Estante de Livros, que é, arrisco-me a dizer, o mais famoso blog literário português, a Célia é uma espécie de mãe blogger para muitos de nós. Entre pioneira e lenda, sou capaz de estar a exagerar ligeiramente, mas a admiração que tenho por ela não é pouca.

Visitem o blog dela para ficarem a conhecê-la melhor. Leitora ávida, mãe (literalmente) e blogger, a Célia é uma referência e, no meu caso pessoal, um dos motivos para ter criado este blog. Uma das inspirações que fermentaram na minha mente e me deixaram com vontade de o fazer, digamos assim.

Com isto tudo, é fácil de imaginar a minha satisfação quando ela me convidou a escrever uma crónica para o blog dela, sobre a desgraça das leituras obrigatórias na escola, e ainda mais por ver que é visitante regular aqui do QAENCEC. Pois bem, chegou a altura de retribuir o favor! Nunca a conhecia pessoalmente, é certo, mas li as opiniões dela durante tanto tempo que não tive dificuldade em reconhecê-la neste texto. O que lhe pedi, sendo ela fã de Fantasia, foi uma reflexão sobre o género e o preconceito que existe contra ele. O resultado está à vista. Obrigado!

P.S.: as fotos são dos livros da Célia, tiradas pela própria. Fantásticos!

Um pouco de história

O meu primeiro contacto com mundos fantásticos na literatura aconteceu-me por volta dos 17 anos, quando por ocasião do Natal me foi oferecido o primeiro volume da série Harry Potter, pouco tempo após ter sido publicado em Portugal (ainda tinha a capa com a coruja!). Lembro-me de ter devorado o livro, mas infelizmente só recebi o 2.º volume no Natal seguinte. Estava a adorar a série, tão diferente de tudo o que tinha lido até então - que, diga-se em abono da verdade, não tinha sido grande coisa para além de alguns livros juvenis como a série "Uma Aventura" ou livros da Alice Vieira. Em 2001, estava a contar receber o 3.º volume da série e o embrulho em forma de livro que estava debaixo da árvore deixou-me com boas perspetivas. Só que o que lá estava não era mais um volume da série "Harry Potter", mas sim "A Irmandade do Anel", reeditado naquele Natal porque tinha acabado de estrear o respetivo filme. Nunca tinha ouvido falar em Tolkien nem naqueles livros (só tive internet mais tarde, malta!), por isso torci o nariz àquele presente que o meu pai decidiu oferecer-me. Comecei a lê-lo no dia seguinte e lembro-me exatamente de tudo o que senti durante os 3-4 dias que demorei a terminá-lo. Vivi na Terra Média, absorvi cada palavra de Tolkien como se fosse um bem essencial e escusado será dizer que não descansei enquanto não pus as mãos em cima de todos os livros dele que estavam publicados por cá. Li, reli e voltei a ler aqueles livros e hoje recordo essa fase da minha vida como provavelmente a melhor em termos literários, aquela que me transformou em leitora e que lançou as bases de tudo. Pode dizer-se que foram os livros e o autor certo na altura certa, abrindo-me os horizontes para a literatura de um modo geral, e para a fantasia em particular. A partir daí, fiquei sempre muito mais atenta aos livros fantásticos que iam aparecendo, e alguns tornaram-se favoritos (Juliet Marillier, George R.R. Martin, Robin Hobb and so on). Por isso, se me perguntarem qual é o meu género literário favorito direi, sem grandes hesitações: a literatura fantástica.



O que é que a fantasia tem

Não é fácil explicar os motivos que me levam a gostar tanto deste tipo de literatura. Penso que, acima de tudo, é uma questão de predisposição pessoal. Conheço pessoas que gostam de ler mas que têm extremas dificuldades em visualizar mundos imaginários, ou que pura e simplesmente descartam a fantasia como género menor, fruto de preconceitos vários (questão que desenvolverei abaixo). Falando por mim, gosto, em primeiro lugar, do mundo de possibilidades que abre: tudo é possível, não há limites à imaginação. Vivemos numa época de mudança constante, de evolução tecnológica, onde tudo acontece e passa rapidamente; penso que a fantasia, no seu sub-género mais comum (vertente medievalista), tende a oferecer o leitor um escape para o stress do dia-a-dia, permitindo-o viajar no tempo e viver num mundo completamente diferente do seu. Isto, aliado à presença de pessoas (ou seres!) com problemas reais, boa escrita e enredos inesquecíveis, faz com que a fantasia se torne, para mim, num género irresistível. Mais, parece-me mesmo um dos poucos géneros literários em que as fronteiras entre literatura infantil/juvenil e literatura para adultos são mais ténues.


A fantasia como género menor?

Tenho a ideia que a maioria dos críticos literários profissionais pura e simplesmente descarta a fantasia como género menor, muito pouco literário. Se comprarmos revistas literárias ou lermos suplementos de jornais onde se fazem críticas literárias, raramente encontramos livros fantásticos. Porquê? Porque, penso eu, estas pessoas escrevem para elites e as elites não leem fantasia. Sei que isto é generalizar e que há várias exceções, mas diria que a principal diferença entre a fantasia e a dita literatura é o enfoque das narrativas: enquanto que na fantasia, normalmente se dá primazia ao enredo, na literatura o habitual é que o estilo e as personagens estejam no centro das atenções. Portanto, a fantasia seria, à partida, um género menor para os críticos pela sua falta de qualidade literária. O "problema" é que este género é atualmente muito popular, o que se reflete em vendas de livros e audiências nas adaptações telivisivas/cinematográficas. As pessoas gostam de fantasia e a extrema popularidade de autores como Tolkien ou George R.R. Martin obrigou a que merecessem atenção para além da popular. Penso que estes autores foram impostos à elite literária (um pouco contrariada, talvez) precisamente por serem amados por tanta gente e, se não são considerados "literários" são, pelo menos, mais bem aceites que outros. Há outros autores dentro da ficção especulativa que conseguiram, de certo modo, utrapassar as fronteiras dos géneros em que escrevem (lembro-me da Ursula K. Le Guin ou da Margaret Atwood), talvez por causa da sua escrita mais "literária". Aliás, saindo um pouco da ficção especulativa, recorde-se os prémios ganhos por Hilary Mantel, dentro de um género (ficção histórica) que normalmente não é premiado ao mais alto nível. Portanto, identifico dois motivos para que alguns autores do género sejam mais bem aceites nos círculos literários mais restritos: extrema popularidade e/ou fantasia com maior enfoque na escrita e nas personagens.



Em jeito de conclusão

A fantasia, tal como qualquer outro género, tem livros muito bons, livros assim-assim e livros maus. Há na fantasia histórias muito bem escritas, que lidam com temas atuais, com personagens bem desenvolvidas e empáticas e enredos cativantes e bem delineados. Admito que muitos leitores já tenham experimentado o género e não seja, de todo a sua praia, mas também acredito que muitos deles provavelmente pegaram no livro errado e não voltaram a tentar. Por isso, leiam, experimentem: é bom sair fora da nossa zona de conforto, abrir horizontes. Seja em relação à fantasia ou a outro género qualquer.

sexta-feira, 22 de agosto de 2014

X-Men #7


Argumento: Brian Michael Bendis
Arte: Chris Bachalo, Tim Townsend, Jaime Mendoza, Al Vey, Victor Olazaba, Frazer Irving
Tradução: Filipe Faria

Opinião: Panini, Panini, Panini... Temos que conversar. Não te preocupes, não quero que a nossa relação acabe, mas... Assim não pode ser.

Eu sei que o problema não é inteiramente teu, eu sei, não tens culpa que o Bendis goste tanto de pôr as personagens a conversar para o enredo avançar, em vez de deixar as coisas acontecer. Eu sei. Também compreendo que as questões de logísticas são complicadas, e que estas publicações mensais são um risco por si só, mas tens que fazer alguma coisa.

Continuares a vender duas revistas americanas fundidas numa só não dá com nada. Estás só a fazer render o peixe, pois consegues ter revistas para vender durante mais tempo, obrigando as pessoas a comprar tudo como uma continuidade, quando não é bem assim. E eu não estou a gostar disso Panini, não estou a gostar mesmo nada.

Da primeira vez que aconteceu, na revista #4, deixei passar. Até gostei, compreendes? Era novo, mas era a mesma coisa... E era uma perspectiva interessante. Mas agora até já começo a duvidar se sabes o que andas a vender. Tu já conhecias esta história? Já tinhas lido estas revistas? É que não está a resultar.

Calma, não é preciso gritares, eu explico. O enredo deste pedaço do universo Marvel avançou durante estas sete revistas o equivalente a cinco revistas. Estás a ver o problema? Se fosse uma coisa mais linear, eu neste momento tinha acabado de ler algo que só devo ler daqui a pelo menos dois meses.

Desta forma parece que estou a ler a mesma coisa há dois meses. Os pontos de vista são diferentes, é certo, e existem histórias paralelas que, concedo, também merecem o seu direito de antena, mas junta-se este atraso à vontade imensa que o Bendis tem de escrever diálogo e a sensação é que a leitura se arrasta.

O que é uma pena, digo-te já Panini... Porque eu gosto muito dos X-Men, e até estava a apreciar acompanhar esta história, depois de mais uma espécie de reset ao universo Marvel, mas já me começo a questionar se não teria feito melhor em pegar no Homem-Aranha.

Sabes o que isto significa, não sabes? Desculpa, a sério, foi porreiro ver a Magia a ser arrastada para o Limbo, e ver porrada com demónios e isso tudo, mas além disso as únicas coisas de útil que se tiraram daqui foi que a S.H.I.E.L.D. se vai meter ao barulho e que os novos mutantes são putos das novas gerações, imbecis e irresponsáveis!

E lá está, a culpa não é inteiramente tua. Não foste tu que escolheste o Frazer Irving para desenhar expressões faciais horripilantes e completamente desadequadas. Mas foste tu que criaste esta salganhada. Disso não te safas. Podias ter efectivamente criado dois títulos e fazer exactamente o mesmo plano de vendas, mas com uma clara separação entre as coisas. O número #4 dos X-Men seria o número #1 dos Outros X-Men, ou coisa que o valha, e a separação para o leitor era evidente.

Como está, por mais que eu queira separar, a minha mente não me deixa fazê-lo completamente. Não te preocupes, a maior parte da culpa é do Bendis (e das expressões faciais que o Irving desenhou, eugh), do seu enredo super lento e das suas personagens a 2D. Mas acho bem que a coisa melhor, se não acho que vamos ter que nos afastar durante uns tempos...

quarta-feira, 20 de agosto de 2014

The Two Towers [1/2] (The Lord of the Rings #2)


Autor: J.R.R.Tolkien


Opinião: Com a Irmandade desfeita e membros importantes em falta, esta primeira metade de The Two Towers assume uma importância insuspeita na trilogia. Já não há apresentações a fazer, nem um mundo para explorar a partir do zero. A prova disso mesmo é o começo no seguimento imediato do final do primeiro livro (12), mergulhando-nos directamente na acção.

Mas qual a importância, afinal, desta parte? É preciso esclarecer que teve uma grande vantagem, do meu ponto de vista: nem sinal de Frodo e Sam. Pois é. eu já me lembrava disto da primeira vez que li a trilogia, e como as únicas memórias que tinha da história correspondiam aos filmes, também não ia lá.

Durante esta metade acompanhamos apenas Merry e Pippin, levados por orcs e uruk-hais, e Aragorn, Legolas e Gimli, em busca dos três primeiros. Frodo e Sam "fugiram" sozinhos em direcção a Mordor, e ao resto da Irmandade já toda a gente sabe o que aconteceu.

Isto para mim foi bom, porque eu nunca tive, e provavelmente nunca vou ter, qualquer pingo de paciência para a relação e as interações entre Frodo e Sam. Os dois hobbits têm uma dinâmica curiosa de líder e seguidor, mas que borda várias no doentio. E também me chateia a tendência para ignorar Sam.

É que se Frodo está destinado a ser o herói trágico, chegando mesmo a ser visto como tal por todas as personagens com conhecimento real sobre o que se passa, Sam é apenas o criado leal até à exaustão, com um sentido de honra que o faz partilhar o fardo do seu amo, pelo menos em termos psicológicos (até agora).

Mas essa conversa fica para outra altura, que é preciso falar do que se passou ao longo destas páginas. Entre pedaços interessantes mais centrados nas criaturas maléficas de Sauron e Saruman, e a longa busca de Aragorn, Legolas e Gimli, não sei bem o que terá sido mais interessante. Os orcs e companhia são raças curiosas e tão intrisecamente malévolas, que por pouco protagonismo directo que Tolkien lhes dê, se destacam. Já os três estarolas multi-espécies são, acima de tudo, extremamente engraçados.

Aragorn, o humano, faz o papel de pai porreiro, capaz de interromper a gravidade do seu semblante para rir de forma honesta, enquanto Legolas e Gimli são os irmãos improváveis, pertencentes a raças que, basicamente, não se dão, mas que se estão a tornar muito rapidamente no melhor tipo de amigos possíveis.

Mas aproximadamente a meio (a vinte e cinco por cento do livro, portanto) Tolkien volta a introduzir coisas novas, levando-nos a visitar Rohan e a conhecer os seus famosos cavaleiros, por exemplo. Mas a melhor parte, e que até agora é o meu capítulo favorito de Tolkien, é quando Merry e Pippin fogem para Fangorn, a floresta amaldiçoada, ou coisa que o valha, e conhecem Treebeard, o Ent.

Os Ents são árvores ambulantes, seres antigos e com responsabilidades no que diz respeito às florestas de Middle-Earth. Qualquer pessoa que tenha visto os filmes se lembra das gloriosas imagens de árvores enormes e vagarosas a marcharem para a batalha e a estraçalharem tudo o que lhes apareceu à frente.

Aquilo que é fantástico, no entanto, é o capítulo dos dois hobbits em Fangorn, acompanhados por Treebeard, desde a altura em que o descobrem até à altura em que o fazem incitar os Ents a partirem para a porrada. Todo esse capítulo é delicioso: as descrições da floresta e dos Ents; a personalidade de Treebeard; a forma como os Ents falam e lidam com as coisas, enfim, tudo é digno de nota!

A parte final, como não podia deixar de ser, é fantástica. A batalha é menos grandiosa do que no filme, mas vá, é normal. O confronto de Gandalf (*gasp* SURPRISE!) com Saruman é intenso, e as suas consequências permitem um final (que não é mais do que um meio) forte e cativante.

O meu medo agora é que a segunda parte seja exclusivamente dedicada a Frodo e a Sam, e a coisa me aborreça, mesmo com o inevitável aparecimento de Gollum e uma certa aranha. Não sei até que ponto a narrativa não teria beneficiado de ir intercalando mais as coisas... Mas por outro lado, se o fizesse, este final intenso de que falei só estaria mesmo no final, e isso não ia ter piada nenhuma!

segunda-feira, 18 de agosto de 2014

Livro de Soror Saudade


Autora: Florbela Espanca


Opinião: Estão a ver? Eu tento. A sério que tento. Volta e meia, por muito espaçado que seja, pego num livro de poesia. E não volto sempre aos mesmos autores, tento diversificar a coisa, para ficar realmente a conhecer a poesia enquanto género, especialmente a poesia portuguesa.

Desta vez até o fiz numa edição espectacular, fac-similada de uma edição antiga. Este fac-símile é apenas um dos livros pertencentes a uma colecção, toda ela espectacular, comemorativa dos quinhentos anos da Biblioteca da Universidade da Coimbra, e prometo que irão ver mais volumes durante esta Temporada Temática.

Se tiverem interesse em ler, esta edição é boa, mas há outras, claro, uma das quais merece ser destacada de forma particular: a versão ebook do Projecto Adamastor. São boas versões, com uma boa edição e excelentes capas. Definitivamente aconselhado!

Passemos agora à parte desagradável. A leitura deste livro. Já se torna cansativo falar da minha relação com a poesia, portanto digo apenas que tentei ao máximo deixar os meus preconceitos de lado. O resultado não foi bom de qualquer forma.

Com apenas trinta e seis sonetos, custou-me um bocado a terminá-lo. Eu já sabia ao que ia, mas não me tinha verdadeiramente mentalizado para toda a lamechice presente nestas páginas. Ok, eu sei que não é lamechice, são poemas de amor, e de paixão, que muita gente considera muito bonitos, mas a mim não me apanham.

As imagens evocadas são relativamente banais, e o tom dos sonetos é repetitivo. Falam quase todos exactamente da mesma coisa, praticamente da mesma forma. Eugh.

Convenhamos que era um livro condenado à partida: não só era poesia como era poesia romântica duma época em que o romantismo andava em alta. Ficaria espantado era se tivesse gostado. A impressão com que fiquei foi a de estar a ler aquelas coisas que as adolescentes perdidamente apaixonadas escrevem para os seus mais-que-tudo que conheceram há duas semanas.

Não digo que não haja aqui qualidade: apenas me abstenho de emitir grandes juízos sobre isso, porque não é uma leitura à minha medida, e porque tanto subjectivamente como objectivamente... me aborreceu.

sábado, 16 de agosto de 2014

Sentir a Literatura


Vou ser honesto: às vezes farto-me de falar de livros. Tenho este blog há mais de cinco anos e raramente falo de outra coisa. Lá aparece a ocasional opinião sobre um filme, ou alguma outra coisa, mas o dia-a-dia aqui no Que a Estante nos Caia em Cima é livros para aqui, contos para acolá, autores por todo o lado, enredos e personagens e descrições e narradores e antologias e bla bla bla.

Foi para isso que o blog foi criado, é certo, mas às vezes sinto que falta alguma coisa. No meio de tudo isto, discussões, debates, opiniões, guerras de géneros e análises que conseguem fugir para o mecânico e impessoal, acontece aqui o que acontece a muitos outros blogs: esquecem-se da literatura.

Por entre leituras e opiniões, qualquer um de nós pode facilmente ficar a saber tudo sobre as personagens, o enredo, o contexto social-político-económico-filosófico do livro e do autor e tudo o mais. Mas também vejo que cada vez mais nos esquecemos de falar da forma como um certo livro manipulou as nossas emoções, não só as nossas expectativas, mas aquilo que sentimos realmente.

O poder da literatura é esse mesmo, na minha opinião. Um bom exemplar consegue transmitir ideias e ideais, mensagens e pontos de vista, por uma via emotiva, além da via racional. O que é fantástico nisso é que se é relativamente fácil esquecermo-nos de algo que aprendemos há dez anos, dificilmente iremos esquecer algo que sentimos.

Muitas vezes nem fazemos por mal! Acho que já processamos isso como algo tão inerente às nossas leituras, que nem compreendemos verdadeiramente. Estamos "preocupados" em analisar o comportamento das personagens, o ritmo do enredo, a beleza e a fluidez da escrita, mas não nos concentramos em analisar aquilo que sentimos - há poucos Fernandos Pessoas por aí.

É claro que há alguma coisa que passa. Seja de forma explícita nas opiniões, ou nas entrelinhas, que somos todos pessoas inteligentes o suficiente para isso. Aquilo que vejo é que mesmo isso começa a ficar afogado no meio de considerações sobre os aspectos técnicos e formais, o que é uma pena. Já chegam os críticos literários profissionais para isso, com as suas análises secas e objectivas, que acabam quase sempre por falhar completamente a razão de ser de determinada obra para além daquilo que já foi estudado e aceite até à exaustão.

Temos que dar um passo atrás e olhar novamente para tudo o que sabemos sobre Literatura. E depois fazer perguntas. Já pensaram podemos considerar como Literatura coisas que não estão escritas em lado nenhum? Ou que não temos necessariamente de ler para entrar em contacto com Literatura? Ou que não se livram da Literatura só porque vão a andar distraídos na rua?

Considerações metafísicas à parte, que não quero ir tão longe, já pensaram nisto? E noutras questões, que há muitas de certeza? Se nunca o fizeram, façam agora: não somos críticos literários profissionais, somos leitores*.

*o significado literal de leitores é um bocado restritivo, tendo em conta todo o meu paleio até agora, portanto façam-me o jeitinho de entender a palavra como era suposto, sim?

sexta-feira, 15 de agosto de 2014

The Detective (Johannes Cabal #2)


Autor: Jonathan L. Howard


Opinião: Gostei mais do primeiro. Não é a melhor forma de começar uma opinião, mas é verdade. A personagem principal, convenha-se, é fascinante, mas é preciso ter cuidado na sua utilização: neste livro, acho que o autor falhou ligeiramente.

No entanto o livro é bom. Diverti-me quase tanto como ao ler o primeiro, mas notei mais a artificialidade da narrativa e do humor.

Estou a tornar-me confuso. Em termos simples: gostei, mas fiquei desiludido.

Parte do problema é o foco do livro. Enquanto que em The Necromancer, são as artes negras que estão no centro da narrativa, sendo que Cabal quase que fica só com o papel de simples e sarcástico veículo dessas artes, em The Detectiva as magias e ciências ocultas tomam um papel muito mais secundário.

Qual é o problema disto, exactamente? Bem, Cabal é divertido, em grande parte, por causa das suas reacções e interacções completamente fora de sintonia com os seres humanos normais, mas foi a forma como age junto do sobrenatural que me cativou.

E aqui perde-se isso em favor de intrigas políticas e militares entre caricaturas de países povoados de caricaturas de povos ridículos por si próprios. Não é mau ver que a história de Cabal não se prende demasiado ao que quer que seja, tirando a sua sempre presente missão de conseguir ressuscitar os mortos com total eficácia, mas aqui afastou-se de mais.

Não deixa de ser um homem extremamente engraçado. A sua personalidade fria e metódica continua fascinante, e a forma como pensa e como trata toda a gente é hilariante.

O enredo, esse, é relativamente banal, ainda que tenha algumas pitadas de interesse mais acentuado aqui e ali. Tenho mais interesse para o terceiro, The Fear Institute, mas queria deixar bem claro que gostei de ler este livro, e que ainda deu para rir um bom bocado. Os diálogos têm momentos brilhantes, e o próprio narrador consegue fazer rir com alguma facilidade.

Ou seja, apesar de tudo o que eu disse, façam o favor de experimentar!

quarta-feira, 13 de agosto de 2014

Que as citações nos caiam em cima [55]


"They looked back. Dark yawned the archway of the Gates under the mountain-shadow. Faint and far beneath the earth rolled the slow drum-beats: doom. A thin black smoke trailed out. Nothing else was to be seen, the dale all around was empty. Doom. Grief at last wholly overcame them, and they wept long, some standing and silent, some cast upon the ground. Doom, doom. The drum-beats faded."

The Fellowship of the Ring (Lord of the Rings #1)
J.R.R.Tolkien

The Fellowship of the Ring [2/2] (The Lord of the Rings #1)




Autor: J.R.R.Tolkien

Sinopse

The Fellowship of the Ring [1/2]

Opinião: Não há uma forma fácil de ler Tolkien. Esqueçam as noites passadas em claro, as duzentas páginas de uma assentada, as releituras imediatas, esqueçam isso tudo. Com todas as suas virtudes e todos os seus defeitos, Tolkien é para ler com calma.

Nem digo que seja para assimilar a complexidade do enredo - que é praticamente zero - mas sim a complexidade da universo criado. Nada é deixado ao acaso: raças, lugares, mitologia, história, nomes, línguas, política, tudo está detalhado na mente do autor. Isto leva a que mesmo não mencionando a maior parte das coisas de forma directa, o leitor as consiga apreender.

É claro que com um livro inteiro já despachado se consegue perceber a principal falha-que-não-é-bem-uma-falha. Quase tudo é simbólico de uma forma demasiado óbvia, e há bons e maus e acabou.

O simbolismo é gritante, as raças têm todas aspectos de acordo com as suas personalidades e particularidades colectivas, e se algum se destaca é diferente de alguma forma. Depois os feios são maus e os bonitos são bons. O exemplo normalmente apontado são os orcs e os elfos, mas eu acho que basta falar de Galadriel e Gandalf, a beleza única de uma e o ar de avôzinho simpático de outro completamente contrabalançados pelo ar temível que ambos tomam nos seus momentos mais negros. A ideia é fácil e metida a martelo: feio = mau, bonito = bom.

Falando de outras coisas, é nesta segunda metade que conhecemos Rivendell e se forma a Irmandade do Anel, interessante por um motivo de que nunca me tinha lembrado: é um curioso exemplo de uma sociedade utópica.

Eu sei, eu sei, quando se começam a fazer este tipo de comparações é porque já se está a ler mais do que aquilo que o autor escreveu, mas isto saltou-me à vista. Gandalf, sem dúvida o elemento mais poderoso, é único, assim como Legolas e Gimli, pertencentes a raças que os elevam de alguma forma em relação aos Humanos, Aragorn e Boromir, e aos Hobbits, Frodo, Sam, Merry e Pippin. Quanto mais "fracos", mais bem representados estão!

Mas agora é que as coisas começam a ficar interessantes. Gandalf é demasiado poderoso! Então fica para trás. A distribuição de poder/números fica mais equilibrada. Mas Frodo não é um Hobbit normal... Então separa-se do grupo, juntamente com Sam.

E é exactamente neste momento, quando a Irmandade se fragmenta desta forma, que a união das raças se verifica em pleno. Ou melhor, ligeiramente mais à frente, já dentro do segundo livro, mas pronto. Quando se formou, em Rivendell, rodeados de beleza e um sentimento de segurança, o que os movia era um sentido de dever e as suas próprias missões pessoais. Mas agora? Querem mais união do que isto? As grandes raças de Middle-Earth, mais do que unidas, ligadas. São uma família! Ligeiramente disfuncional, é certo, mas não são todas?

Todo o percurso é fascinante, as descrições dos cenários são assombrosas, e a atenção ao detalhe é enorme. O que me esta a agradar mais na escrita é que embora o enredo tenha um ritmo relativamente lento, a narrativa nunca se arrasta. As descrições tem o seu quê de exaustivo, os diálogos são longos e repletos de salamaleques, mas o ritmo da escrita é rápido.

O truque é que nunca aborrece. Cada frase revela alguma coisa, um pormenor do enredo, um pormenor de uma personagem ou um pormenor do sítio onde se encontram, mas tudo é importante.

Engraçado é ver que, tecnicamente, a Irmandade só existe em metade do livro, e que o último capítulo se chama exactamente The Breaking of the Fellowship! Para além de abrir várias possibilidades para o futuro da trilogia, dá um excelente final a este primeiro tomo, que me deixou a salivar por mais!

Só que lá está. É preciso ter calma. Tive que ler qualquer coisa no intervalo, porque preciso de assimilar bem o que acabei de ler. Mas agora já estou entretido com The Two Towers, e o fascínio não diminuiu, portanto continuem a acompanhar e, se possível, leiam também!

segunda-feira, 11 de agosto de 2014

Que as citações nos caiam em cima [54]


“E à noite, quando o luar dava em cheio na telha vã da casa, e os montes de S. Domingo, lá longe, pareciam ter já saudade das suas patas seguras e delicadas, quando o cheiro da última perdiz se esvaiu dentro de si, quando o galo cantou a anunciar a manhã que vinha perto, quando a imagem do filho se lhe varreu do juízo, fechou duma vez os olhos e morreu.”

Nero, Bichos
Miguel Torga

Bichos

Autor: Miguel Torga


Opinião: Parti para a leitura deste livro sem ter a mínima ideia do que esperar. Já li Torga, há muito tempo, e para não me lembrar de grande coisa... Bem, não tinha grandes expectativas. No entanto tinha a impressão de que ia gostar mais do que da última vez.

O primeiro embate é com o prefácio, que é curto mas promissor. Miguel Torga parece ter aquela escrita terrena e popular (do povo!) que gosto de ver em autores portugueses. O seu à-vontade e companheirismo, pelo menos aparente, para com os leitores, agradou-me.

Mas julgar um escritor por um prefácio é pouco. No primeiro conto, Nero, a escrita é boa, mas não foi o suficiente para me convencer. A história, por outro lado, é estranhamente interessante, tendo em conta que é do ponto de vista de um cão.

Mago, a história seguinte, já é com um gato. A melhor parte é ver como o tom do narrador se adequa à personagem, arrogante mas estragada pelo mimo, como muitos gatos indolentes. A continuar assim, com esta capacidade de moldar o narrador, ganhava o meu apreço sem grande esforço!

O conto seguinte, Madalena, parecia continuar a tendência. É perturbador, mas está muito bem escrito. Demorei um bocado a ficar convencido de que era uma pessoa e não uma burra, mas talvez o significado escondido se prenda com isso mesmo. A verdade é que não fiquei com certezas de nada.

Já em Morgado, um bom conto sobre um burro, com uma história muito desagradável, a escrita finalmente conseguiu convencer-me! Eu sou fã de burros, portanto não fiquei muito feliz com o dono de Morgado, mas pronto, o facto de eu ter sentido isso é bom sinal.

Depois vem Bambo que, tal como os outros contos, consegue ser estranhamente interessante, apesar de ser sobre um sapo. No entanto parece-me que o que está a salvar o livro é a escrita.

Felizmente, e para contrariar essa tendência, o conto Tenório é bem porreiro. O sacana do galo é arrogante e tem cá um pânico de perder o lugar! Confirma-se aqui, sem sombra de dúvida, a mestria de Torga a moldar o narrador.

Logo a seguir, no entanto, lá vem um conto chamado Jesus, que não percebi. A história é curta, mas toda bonita e fofinha, ainda que com uns laivos algo misteriosos. O que interessa é que no fim fiquei sem perceber quem era Jesus.

Para não me chatear muito, lá vem Cega-Rega, muito bem escrito e com a cigarra mais interessante que já vi. Aqui aparece também uma das sequências mais espectaculares do livro, uma metamorfose que Torga descreve de forma excelente.

O ritmo acelerado de Ladino, completamente em sintonia com a personalidade do pardaleco, é muito interessante de acompanhar e mais uma prova da forma como Torga molda os narradores. Quase que consegui ver o bicho aos saltinhos hiperactivos!

Falando de personagens interessantes, em Ramiro há um pastor que não fala, mas que brilha. Começo é a sentir a falta de histórias maiores.

Farrusco é um melro com coração, mas esta sequência de histórias curtas não me está mesmo nada a  agradar. Não há grande desenvolvimento, nem nada que se pareça, o que é uma pena, porque quando Torga tem algum espaço, consegue fazê-lo bem.

Finalmente um conto que me enche completamente as medidas, Miura, sobre um touro durante uma tourada. Impecável! As dúvidas, os problemas e as certezas que assaltam Miura estão bem exploradas, e a sua luta com os toureiros também.

O Senhor Nicolau também está bem escrito e tem um bom final, bastante irónico, embora do resto da história não me tenha ficado grande memória.

É pena que para finalizar tenha aparecido Vicente, que embora extremamente interessante e ligeiramente blafesmo, tal como eu gosto, destoa completamente dos contos anteriores. Todos os contos até aqui eram de certa forma caseiros e retratavam a vida na província. Este, por outro lado, é sobre um corvo que foge da Arca de Noé! Não percebi a lógica.

Depois de dizer tudo isto, a minha opinião geral é que não achei nada mau, mas também não achei nada de extraordinário. Os contos são diferentes daquilo que eu esperava, no melhor dos sentidos possíveis, mas isto acaba muitas vezes por entreter mais pela escrita do que pelos contos no seu todo.

sábado, 9 de agosto de 2014

Blindness



Argumento: Don McKellar
Director: Fernando Meirelles
Principais actores: Julianne Moore, Mark Rufallo, Daniel Glover, Alice Braga e Gael García Bernal

Opinião: Depois de ler o Ensaio sobre a Cegueira, é óbvio que era apenas uma questão de tempo até ver este filme. A literatura portuguesa costuma ter fama de não ser filmável, e este livro em particular era o campeão desse adjectivo. Os livros de Saramago não são fáceis de ler, quanto mais de adaptar!

A minha curiosidade era imensa. Seria possível? Seria realmente possível? Eu estava optimista, pois lembrava-me sempre da notícia em que Saramago assistia ao filme e chorava no fim. Ele era um homem difícil de agradar, e um escritor bastante orgulhoso da sua obra, portanto isso só podia ser bom sinal.

Não me enganei. Ainda com o livro fresco na memória, aquilo a que assisti foi a uma das melhores adaptações cinematográficas de livros que conheço. Enquanto adaptação está ao nível de O Perfume, baseado na obra de Patrick Süskind, e na trilogia de O Senhor dos Anéis, baseado na obra de Tolkien. Enquanto filme, no entanto, é bastante superior ao primeiro, ainda que não chegue aos calcanhares do épico de Middle-Earth.


O começo é igualzinho. Bom presságio! Todos os pormenores batem certo, uma tendência que se verifica durante o resto do filme, desde a angústia do primeiro cego ao não conseguir ver o semáforo, até ao acto reflexo de espreitar pelo buraco da porta.

Houve uma coisa que não percebi muito bem, e que não sei se hei-de louvar ou não. O primeiro cego e a mulher são asiáticos, e há algumas personagens negras e latinas, sem que no livro haja qualquer indicação disso. Uma tentativa de introduzir diversidade cultural? É verdade que adiciona uma questão racial à premissa, já de si complexa e com várias camadas, mas não me parece muito necessário.

Mas o resto é impecável: Mark Rufallo, mais conhecido ultimamente pelo seu papel de Hulk, está fantástico como o médico, e Julianne Moore, como mulher do médico, começou por não me agradar, mas é só nas primeiras cenas, em que tem um ar mais estouvado e fútil do que devia. Melhora ao longo do filme e rapidamente é a mulher fria e implacável do livro.


A consistência do filme é tremenda, não há momentos mortos nem desvios narrativos, há uma história para contar, uma grande alegoria executada com mestria, apoiada na excelente matéria prima que é a obra de Saramago.

Os momentos esporádicos de puro brilhantismo são vários, como a cena em que todos começam a cegar, bastante semelhante ao que acontece no livro, que mesmo sendo curta, é tremendamente exasperante. Tem o mesmo papel de pôr o enredo a andar que no livro, servindo de grande ponto final na introdução.

Depois é preciso notar a predominância do branco em todo o filme. Afinal, a cegueira é branca, e esta cor tem grande destaque no primeiro terço do filme, com pelo menos dois propósitos bastante óbvios: como complemento a essa cegueira e como contraste à sujidade que vem depois. Pelo meio há uma série de flashes brancos, bastante ominosos e arrepiantes em vários momentos.


Já fechados no manicómio, acontece mais um daqueles momentos brilhantes, com a mulher do médico a percorrer um corredor que vai mudando lentamente com a passagem do tempo. É aqui que a brancura geral do filme dá lugar à imundície, à sujidade de um mundo de cegos contidos num espaço fechado e deixados ao abandono. Muito bom.

Outro momento fantástico é ver o primeiro cego e a sua mulher a conversarem, sentados num banco de jardim, tudo muito normal, quase um traço de esperança no meio do pânico e do desespero que grassava no manicómio... Só que à frente deles está uma parede de cimento. O simbolismo é óbvio e poderoso.

A partir da segunda metade começam os momentos assustadores e verdadeiramente perturbadores. Até agora há só desespero e o descambar de uma sociedade, mas quando um cego sai da linha de novos inquilinos do manicómio e vagueia, completamente perdido, a pedir ajuda, e leva um tiro que o deixa morto, começa o horror.


O tiro desencadeia o pânico colectivo, e as pessoas começam a correr e a empurrar para entrar. Morrem pessoas, esmagadas debaixo dos pés dos seus iguais. Depois é preciso uma pá para enterrar os mortos, e é arrepiante ver o soldado a guiar a mulher do médico, divertido como se de um jogo se tratasse.

É então que se dá o momento decisivo, aquele pormenor em que se atinge o fundo mais fundo e nós percebemos, em grande parte graças à actuação fantástica de Bernal, que já não há nada a fazer. A personagem de Bernal – a tal que passou curiosamente a ser espanhola – declara-se a si próprio como o rei da ala três e, como tem uma pistola, declara-se também como o guardião e distribuidor da comida.

O riso maníaco que se faz ouvir, acompanhado de palmas e urros dos seus companheiros, é arrepiante. E daí não falta muito para aquela que é a pior cena do livro, de tão intensa e perturbadora: o rei da ala três exige mulheres como pagamento por comida.


Já tendo lido o livro, sei exactamente o que vai acontecer agora, mas isso não torna a situação mais confortável ou menos desagradável de ler. O único pormenor agradável é quando as mulheres vão para a ala três, em fila, mãos nos ombros umas das outras, e há um plano em fundo branco que imita a capa do livro em português. Fenomenal.

Nada do que vem a seguir é fenomenal, tirando as actuações envolvidas. É uma cena tão desconfortável de ver como de ler, e é de louvar a forma como todos os actores cumprem os seus papéis de forma exemplar, uns assustadores, outras submissas.

Depois disto não se pode descer mais, o que se confirma. Não passa muito tempo até o manicómio se incendiar e todos fugirem, embora o grito da mulher do médico, completamente na escuridão, a anunciar a súbita liberdade, não soe tão agradável como devia. Afinal, são um grupo de cegos num mundo de cegos, está tudo perdido, que esperança podem ter? Não vão estar melhores a deambular pelas ruas do que sossegados no manicómio, o que, mais uma vez, se confirma. O mundo é apenas uma prisão maior.


Mas mesmo nos momentos finais, há felicidade. Instalado o grupo em casa do médico, ver as mulheres nuas na varanda, felizes por estarem a chuva e sentirem a água a escorrer por elas abaixo, é tocante. O êxtase quando a visão começa a voltar, aos poucos e poucos a cada uma das personagens, é contagioso.

E depois o final, em que a mulher do médico vai até à varanda, continua a ser arrepiante e nem sei bem dizer porquê. Talvez por resumir em vinte segundos um excelente filme e uma excelente obra, talvez por fazer pensar que tudo continua perdido, mas é de qualquer forma um fim digno deste filme: excelente.


sexta-feira, 8 de agosto de 2014

The Fellowship of the Ring [1/2] (The Lord of the Rings #1)



Autor: J.R.R.Tolkien

Sinopse

Opinião: A primeira vez que li Tolkien, fiquei fascinado. Era novo e facilmente impressionável, com pouca bagagem literária relativamente à que tenho agora, o que levou a dois efeitos curiosos: o primeiro foi uma adoração quase irracional pela obra deste autor; o segundo foi não ter noção da verdadeira qualidade da obra deste autor.

Recentemente já li o The Hobbit e o The Silmarillion, ambos em inglês, duas obras tremendamente diferentes: a primeira, juvenil, mais simples e linear, ficou aquém das minhas expectativas; a segunda, mais violenta e complexa, revelou-se uma montanha demasiado alto para mim.

Pois bem, depois de ter lido aproximadamente um sexto de The Lord of the Rings, a trilogia de fantasia épica mais conhecida de todos os tempos, não tenho problemas em afirmar que é aqui que Tolkien atinge a perfeição narrativa.

O Silmarillion é, sem dúvida, uma obra muito mais complexa e, de certa forma, completa, mas essa mesma complexidade não joga a seu favor: o glossário de nomes tem cerca de cinquenta páginas, na minha edição de aproximadamente quatrocentas e cinquenta. É muita coisa.

Neste livro não há esse problema. Também há alguns nomes disparados ocasionalmente, mas ou são de pouca relevância, ou são explicados e contextualizados rapidamente, ou são pura e simplesmente tão usados que não há problema.

Mas falar de Tolkien e restringir-me à sua capacidade de inventar nomes é a mesma coisa que falar de Saramago e comentar apenas a sua tendência para enumerar coisas de forma aparentemente interminável: é um pormenor interessante mas que não tem grande relevância.

Portanto, o que dizer de Tolkien até agora? Mais concretamente, o que dizer da primeira parte de The Fellowship of the Ring? Para começar é muito complicado estar a ler isto e conseguir desligar-me dos filmes. Mas a prosa é tão rica e o mundo tão complexo, que o efeito não é negativo, antes pelo contrário.

A capacidade deste escritor em criar mundos detalhados é tão imensa que o meu único comentário tem que ser o meu olhar perdido e a minha boca aberta. Profunda admiração. Não é possível sentir outra coisa por Tolkien depois de se ler isto. As suas descrições do Shire, de Bree, dos edifícios, das personagens, dos costumes, dos bons e dos maus, das lendas e dos factos, é tudo fantástico!

Conheço poucos escritores capazes de darem realmente vida às suas palavras, e Tolkien parece que o faz sem esforço. Este estilo de história, a este ritmo, seria perfeito para um autor menor se perder em palha, mas Tolkien diz tudo o que tem a dizer e nunca aborrece.

Os hobbits são boas personagens, especialmente Frodo e Sam, que Merry e Pippin são um bocado indistintos e Bilbo pouco aparece. Gandalf também aparece pouco, mas não ficar cativado pelo feiticeiro cinzento é pura parvoíce. Nas poucas palavras escritas sobre ele, o que transparece é um velhote pacífico dono de um imenso poder e com alguma tendência para se chatear e no segundo seguinte desatar a rir.

Gollum, ainda que apenas mencionado, em grande parte em referências aos acontecimentos do The Hobbit, é muito interessante. Aragorn aparece mesmo no fim, mas a sua figura misteriosa é o suficiente para captar a imaginação. Os vários elfos e personagens menores que vão aparecendo, por pouca relevância que tenham para o enredo, são sempre boas personagens secundárias, tão “reais” como as principais. Mas há uma personagem secundária que se destaca, e de que maneira: Tom Bombadill.

Pelo que já vi em vários sítios, esta personagem é um autêntico mistério, que Tolkien nunca explica muito bem. Tudo nele é estranho, desde a sua constante felicidade aos estranhos poderes que parece ter sobre tudo o que rodeia, e incluindo a sua imunidade aos poderes do Anel.

Há uma personagem que, quando Frodo lhe pergunta quem é Tom Bombadill, lhe respode apenas: “Ele é.” O próprio Tom descreve-se a si próprio de forma enigmática e extremamente interessante. Eu juro que não sei qual era o objectivo de Tolkien com esta personagem, mas a minha teoria é que é apenas algo para gozar com os leitores. “Querem algo para pensar? Tomem lá.”

Independentemente disso, o interesse não se perde em Bombadill. Os Black Riders que perseguem Frodo e companhia são arrepiantes e assustadores, e embora a maior parte da narrativa seja usada para descrever os quatro hobbits em viagem, nunca se torna desinteressante. Se precisam de alguma prova da mestria de Tolkien, é isso mesmo.

Mal posso esperar agora por ler a segunda metade, que deve começar com os hobbits e Aragorn em Rivendell, onde estão perto de chegar no fim desta parte. Já sei que é lá que é de facto formado a Irmandade do Anel, um dos momentos decisivos da trilogia, e quero absorver todos os detalhes, todos!

Por agora, fiquem com esta ideia: Tolkien é excelente, e esta trilogia é muito provavelmente a sua obra-prima.