quarta-feira, 29 de abril de 2015

Que as citações nos caiam em cima [61]


"Um coice. A pólvora queima-me os olhos e penetra-me as narinas. Um pedaço de chumbo voa... Se aquilo fosse um homem... O chumbo partia-lhe a espinha e dexaria de sentir as eprnas, enquanto o seu coração explodia... Outro coice. A bala abria um buraco redondo e eu veria o terror estampado na sua cara enquanto metade do cérebro dele saía pela nuca. Odeio esta arma. Odeio o meu trabalho. E continuo a praticar."

James Gordon em Batman: Ano Um (Batman #1)
Frank Miller

Batman: Ano Um (Batman #1)


Argumento: Frank Miller
Arte: David Mazzucchelli, Richmond Lewis
Tradução: Paulo Moreira

Sinopse

Opinião: Volta e meia faço releituras. Neste caso nem é bem, que ler um livro numa língua ou noutra são coisas diferentes, mas pronto. O que interessa é que há alguns livros que leio mais do que uma vez. E nunca me espanto com o quanto a minha opinião muda.

A sério, leiam a minha opinião de há dois anos sobre este mesmo livro (só que lido em inglês). Já está? Continuemos então. O que é que eu posso dizer? Praticamente só concordo com o facto de que a história é mais sobre o Gordon do que sobre o Batman. De resto? Vamos recomeçar.

Primeiro, a coisa que mais chateou ao reler essa opinião: disse que fazia falta um vilão a sério. Estúpido. Não faz falta nenhuma. Não é esse o objectivo. Ano Um é uma impressionante história de origem que mostra a essência do Batman: alguém que surgiu para proteger uma cidade. Não para a proteger dos supervilões psicopatas, mas simplesmente para a proteger.

E porquê? Porque Gotham é uma cidade que podia ser real. Uma cidade onde o crime é algo banal e tão comum que não é preciso surgir um Joker, nem um Lex Luthor, nem um Magneto, nem um Loki, nem um Thanos, nem nada que se pareça. Gotham precisa de ser salva dos barões da droga, das máfias, dos violadores, dos assaltantes de esquina, dos assassinos, dos políticos corruptos.

É quase religioso. Gotham precisa de ser salva porque peca, quer queira quer não. E da mesma forma que as religiões têm diabos e demónios afins para que as pessoas tenham medo das consequências, também Gotham ganha o seu próprio demónio, Batman, que rapidamente se apercebe que tem de provocar medo, se quer ganhar.

Mas depois a maior parte da narrativa não incide no Batman, mas sim em Gordon. Ou melhor, é dado mais destaque a Gordon, pelo menos. E por muito que eu me tenha queixado da outra vez, agora percebo que faz sentido. É que Gordon - e tenho a certeza de que isto já foi analisado quinhentas mil vezes - e Batman são na realidade aquilo que o outro gostava de ser. O Batman teve que encarnar os seus próprios medos para se tornar eficaz na luta contra o crime, e a sua figura de super-herói acaba por atrair cada vez mais vilões; Gordon, por outro lado, sente-se impotente por ser apenas um homem cumpridor da lei no meio do ninho corrupto que é Gotham.

As histórias paralelas destas duas personagens mostram duas evoluções fascinantes, quase espelhadas. Dois homens que de certa forma se arrependem daquilo que são, mas que têm noção de quais são os seus papéis e os cumprem, apesar de tudo.

A história de Frank Miller ganha assim um novo significado para mim, que a tinha achado mediana. O grafismo de Mazzuchelli também me parece muito mais adequado, não propriamente indefinido, mas impreciso, a revelar no desenho aquilo que Gotham é, uma cidade sem linhas direitas nem linhas tortas, nem recheada de negros nem de brancos, apenas de cinzentos.

Ano Um revela-se uma história muito melhor do que aquela que me lembrava, e uma que aconselho definitivamente, especialmente se forem fãs do Batman. Pode não ser fácil lidar com a falta de protagonismo de Batman, ou a com ausência de um vilão concreto, ou até com a inexperiência do Cavaleiro das Trevas, mas uma leitura mais atenta revela muito mais do que isso: um grande livro.

segunda-feira, 27 de abril de 2015

The Theory of Everything



Baseado em Travelling to Infinity, o livro de memórias de Jane Hawking sobre o tempo em que esteve casada com o físico Stephen Hawking, The Theory of Everything é um bom filme. Está bem feito, tem boas representações, é visualmente bonito e tem uma história cativante que, apesar de tudo, consegue não cair na lamechice pegada e gratuita.

Não que fosse difícil. Sem querer menosprezar o trabalho das pessoas envolvidas neste filme, o facto deste estar relacionado com Stephen Hawking, uma das pessoas mais conhecidas do planeta, e certamente um dos físicos com um dos maiores impactos de sempre na História e na Ciência, já é mais do que meio caminho andado para o sucesso.


Mas é preciso pôr as coisas em perspectiva e ver que poucas coisas falham. As que falham são importantes, mas compreensíveis, por muito que não tenha gostado delas. Além de que Eddie Redmayne e Felicity Jones estão completamente irrepreensíveis como Stephen Hawking e Jane Hawking, ambos a revelarem-se actores de peso.

Ao grande sucesso do filme, e à sua qualidade, muito contribuiu a história genuinamente cativante que é a de Hawking. Sem dúvida uma das mentes mais brilhantes que alguma vez passou pelo mundo da Ciência, a sua luta contra a Esclerose Lateral Amiotrófica que o atingiu muito cedo é realmente exasperante e inspiradora: ultrapassou largamente os poucos anos de vida que lhe prometeram, sem perder o sentido de humor e continua hoje em dia, com setenta e três anos, a fazer Ciência.


O filme retrata principalmente a parte da sua vida que mais foi afectada por esta doença, a altura em que a descobriu, ao mesmo tempo que começava a fazer verdadeiros desenvolvimentos no campo da astrofísica e dava início à sua relação com Jane. Foi uma altura conturbada, como é fácil de imaginar, durante a qual teve de enfrentar desafios sérios e complicados ligados com a sucessiva perda de autonomia física.

E é aqui que o filme falha. Já vi em vários sítios que o livro retrata um Hawking um bocadinho mais, digamos, idiota, do que o do filme, e não duvido. Não que tenha algo a dizer sobre o carácter do físico, que me parece ser uma pessoa excepcional, mas todo o filme tem uma ligeira sensação artificial, como se a história apresentada só o tenha sido depois de ter sido bastante polida.


É que Hawking é retratado como alguém que pouco vacilou frente à doença, Jane como alguém completamente incansável que nunca teve dúvidas até à altura do divórcio, e o próprio divórcio parece ter sido algo muito simples. O filme tem uma história quase demasiado bonita. Soa a conto de fadas. Há uma vertente mais dramática, completamente impossível de evitar devido à doença de Hawking, mas falta qualquer coisa.

As personagens parecem constantemente iludidas, como se fossem versões ultra-inocentes das pessoas que representam. E embora seja possível compreender que, apesar de tudo, Hawking nunca terá sido uma pessoa fácil, de tão teimoso e impetuoso que era, não me parece que esse aspecto tenha sido suficientemente realçado.

Qual a relevância disso? É uma questão de coerência. Sim, ninguém precisa de saber, e não, o filme não tem de dar igual importância a tudo e mais alguma coisa, mas era importante que a história retratada fosse o mais verdadeira possível, mesmo que isso signifique mostrar um lado menos simpático de Hawking. Como é óbvio, isso talvez afastasse algumas pessoas, incapazes de conciliar essa figura com a imagem que têm de Hawking, mas faria deste filme algo ainda melhor.


Os actores seriam certamente capazes de lidar com isso. Tanto Redmayne, como Jones, como qualquer outro actor ou actriz, estão impecáveis durante o tempo todo, conseguindo captar e mostrar os vários e complicados estados emotivos de cada personagem. Uma tarefa especialmente ingrata para Redmayne, que teve que conseguir manter a expressividade quando a personagem já mal se conseguia mexer.


Mesmo com esta falha, o filme é extraordinário. Não acho que seja nenhum portento cinematográfico que vá ficar para a História do Cinema, mas é certamente um filme bem feito, que faz aquilo que é preciso, entreter, cativar e contar uma história que não só nos consegue tocar a todos, como nos permite perceber melhor como é a vida de Stephen Hawking.

The Theory of Everything (A Teoria de Tudo) é assim um filme que vale a pena ver, e que gostei muito de ter apanhado no cinema. Fiquem com o trailer e ganhem curiosidade suficiente!


sábado, 25 de abril de 2015

Estantes Emprestadas [16] - Universos Partilhados


O Joel é um tipo fantástico. É mais um amigo/colega da Oficina de Escrita que recruto para esta rubrica, e mais um que de certeza me vai responder de forma espectacular. Dono de um humor peculiar, mas fantástico, e de uma imaginação sem limites, podem segui-lo principalmente pelo seu site e restantes links que por lá encontrarem. Acreditem que vale a pena. Já o entrevistei, já lhe li algumas coisas mais pequenas, e outras assim a dar para o maiorzito, além de todos os contos que submeteu para a Oficina, e sou fã. Vocês preparem-se!


Tenho um fraquinho por Universos partilhados. Nem vale a pena tentar esconder. Há qualquer coisa no conceito de algo maior onde todas as histórias cabem, que me fascina. Aquela sensação de continuidade ao longo de vários livros independentes, ou que atravessa vários episódios de várias séries diferentes... É qualquer coisa.

Já tentei muitas vezes tentar perceber o porquê, e ainda não tenho a certeza. Mas em parte só pode estar relacionado com a forma como esses Universos me deixam mergulhar mais completamente nas histórias. Mais que não seja porque o autor teve que pensar em muito mais do que apenas aquele livro e aquela história, tornando-a assim mais coerente e mais forte.

Por outro lado tem a ver com fascínio puro. É quase como uma mitologia. Uma história muito maior do que aquela que estiver a ler naquela momento, e que de certa maneira tem influência em tudo. Já para não falar dos pormenores que vão surgindo aqui e ali, por vezes de tal forma subtis que passam completamente ao lado até sabermos da história toda.

E nessa altura, tudo faz sentido. Pode ser uma explicação dada pelo autor numa entrevista, ou uma situação demasiado óbvia noutro livro, mas dá-se aquele click e todo um novo mundo universo se abre diante de nós!

Querem um exemplo simples e porreiro? A Middle-Earth de Tolkien. Não exemplos muito melhores de um enorme Universo dentro do qual o autor inseriu (quase) todas as suas histórias. Funciona? E de que maneira! Tolkien é um caso particular, que o mundo que ele criou é particularmente detalhado e ele foi particularmente meticuloso nos seus livros, mas não deixa de ser representativo por causa disso.

Aqui está um bom exemplo de um autor que cria um universo e depois escreve histórias sobre o que se passa nesse mundo. Adopta diferentes (mais ou menos, vá) pontos de vista, aborda diferentes (mais ou menos, vá) histórias e consegue realmente construir toda uma mitologia, digamos, funcional.

Outro caso completamente diferente é o de Stephen King, que não só é um dos meus autores favoritos, como foi um dos primeiros de cujo Universo partilhado me apercebi. Isso acontece porque ainda não li nada de Dark Tower, saga na qual já me prometeram existir todas as ligações/explicações e mais algumas; e também porque King o faz de forma extremamente subtil. Pelo menos nos livros que li.

Para começar, nem todos os livros precisam de estar inseridos nesse Universo. Depois a forma como o faz é com a introdução das mesmas personagens uma e outra vez em vários livros diferentes, muitas vezes sem qualquer relevância para o enredo. Ou então um vilão que nunca é bem explicado num livro mas que faz todo o sentido para quem tiver lido o segundo.

Mas isto não fica por aqui, que continua a existir muita gente a insistir neste fenómeno, que é de facto extraordinário. E difícil de cumprir. Mas há mais um autor que faz isto muito bem (acho eu, que ainda não lhe li assim tanto quanto isso): Brandon Sanderson. Este tipo sim, é subtil. Uns nomes largados aqui, uns nomes largados acolá, países e cidades e raças estranhas, sempre no tom simples, calmo e divertido que usa sempre.

Quando descobri, depois de ler a trilogia Mistborn, que todos os seus livros estavam de alguma forma relacionados uns com os outros. Não imaginam a minha excitação!

Fora da literatura também há coisas interessantes, embora alguns casos tenham que ser abordados com uma mente aberta, pois não são bem Universos partilhados, ainda que o sejam. Como por exemplo, Doctor Who, que eu consigo sempre, de alguma forma, usar para explicar ou falar sobre alguma coisa. É incrível. Mas bem, Doctor Who, a série?

Errado. Doctor Who, a série, o filme, os livros, as bandas-desenhadas, os jogos, etc, ok? A grande diferença é qual a abrangência da partilha. Tolkien partilhava o seu Universo pelas várias histórias que escrevia; Doctor Who, por outro lado, partilha a sua história por uma série de meios, desde a série original até às bandas-desenhadas que ainda não saíram, existe de tudo um pouco!

E não nos podemos esquecer dos grandes Universos dos pesos pesados das BD's americanas: Marvel e DC. É fácil de esquecer que sejam realmente Universos partilhados, mas são, e dos bons! Bem, pelo menos dos mais completos, ainda que também dos mais incongruentes.

O mais incrível ainda consegue ser o que se faz por cá. Milagre, não? Um bocado. Mas a Imaginauta esforça-se, em parte, exactamente para contrariar esse preconceito: histórias são boas, ficção especulativa é boa, universos partilhados são bons. Deixai-os andar!

Tudo isto para vos mostrar que estes Universos andam por aí, muitas vezes escondidos nos detalhes, de tal forma que até passam despercebidos. E também que valem a pena. De certa forma, este tipo de Universos, depois de descobertos, quase que obrigam a um certo investimento da parte dos leitores, que começam a sentir que fazem parte. Pelo menos é o que me acontece a mim.

E além disso, esses Universos partilhados servem como base para muita coisa, e acabam, de vez em quando, por sustentar completamente várias histórias. Ou então dão uma nova profundidade a determinado livro. Como por exemplo, ao Hobbit, que é porreiro por si só, mas que quando lido sabendo tudo o que sabemos sobre a Middle Earth se torna muito melhor.

Mas ainda falta falar de uma coisa: os Universos partilhados que não o são realmente. Ou se preferirem, os Universos partilhados que são feitos à força pelos fãs. Aquelas ligações estranhas que se fazem entre as coisas, seja por coincidência seja por vontade deliberada de alguém. Já vos aconteceu? E a ti Joel?

Por favor digam de vossa justiça, e fiquem à espera da resposta do Joel, que será de certeza bastante interessante!

sexta-feira, 24 de abril de 2015

Ensaio sobre a Lucidez



Autor: José Saramago


Opinião: As expectativas para este livro eram elevadíssimas. Depois de ler o Ensaio sobre a Cegueira, e ter adorado da forma que adorei, não podia ser de outra forma. Infelizmente este segundo Ensaio não cumpre, em parte pela simples razão de que estava à espera de demasiado deste livro.

No entanto não foi só isso. Acho que este livro este realmente abaixo da qualidade que Saramago costuma ter. Atenção, o livro é bom, até muito bom, mas não é genial. Não está tão bem construído nem explora tão boa ideia de base.

Em termos gerais, e demasiado simplistas, este livro é uma grande paródia/crítica/sátira (todas as variantes têm o seu momento) à burocracia e aos salamaleques políticos do mundo em que vivemos. Basta ler as descrições das reuniões entre ministros, com diálogos enormes e praticamente vazios de conteúdo, para se perceber como é que esse mundo funciona.

Aliás, o próprio narrador tem um certo exagero da eloquência, narrando a história com frases muito compridas e complexas mas que não dizem assim tanto quanto isso. É fantástico, porque não é aborrecido, e tem um objectivo muito bem definido, que é cumprido. Se há algo que não se pode apontar a José Saramago, é que escrevesse mal.

A situação que representa, no entanto, podia ter sido mais desenvolvida. Ou melhor, podia ter sido explorada de forma mais directa. É uma premissa fantástica, ter uma eleição, de repente, em que setenta por cento das pessoas vota em branco, fazer nova eleição e ver essa percentagem subir para os oitenta e três. Oitenta e três por cento de votos em branco! Sabem o que isto é?

Uma rebelião! Uma a sério, bem feita, como deve ser. Não são pessoas que fazem greve todos os dias (válido, mas pouco eficaz e até contra-produtivo), ou que se queixam de como recebem pouco e têm demasiado trabalho enquanto fazem horas extra, sem serem pagas, de livre e espontânea vontade.

É sempre mais complicado do que aquilo que eu acabei de dizer, mas o relevante é que Saramago apresenta aqui uma cidade que decide usar o sistema para lutar contra o sistema. E funciona! É até extremamente eficaz.

O governo, organizado e completo controlo do país, fica de repente completamente paralisado pelos acontecimentos. Embora uma quantidade massiva de votos brancos seja algo efectivamente possível e abrangido pelo sistema, este não está minimamente preparado para lidar com a situação. A única coisa que o governo consegue fazer, numa série de acções mais ou menos directas que se estendem até ao final do livro, é provar que "democracia" é apenas um nome bonito e essencialmente demagógico.

Qual é a reacção? Isolar a cidade, retirar o governo e todas as forças de segurança, tirar-lhe o estatuto de capital do país, infiltrar agentes com o objectivo de descobrir o foco do problema e organizar uma série de investidas ideológicas agressivas para reformatar as pessoas. Tudo serve, incluindo arranjar um bode expiatório insuspeito, ainda que bastante conveniente.

Inacreditável? Sim. Faz sentido? Também. O que é que se faz quando uma ferida gangrena? Tenta-se parar o progresso do problema e, em último caso, corta-se o braço, ou o perna. Neste Ensaio sobre a Lucidez, Saramago descreve essencialmente isso. A máquina bem oleada, mas negligente, que é o governo, encontra um percalço e entra em pânico. Isola o problema. Tenta acabar com ele. Simples.

Já se poderiam tirar muitas considerações só com isto, especialmente em termos políticos, mas não acho que sejam muito relevantes. Quer dizer, é fácil de perceber que o autor diz que "democracia" é um conceito abstracto que apenas serve como aperitivo para as pessoas. "Democracia? Isso é aquilo da liberdade, quero disso!", quando a realidade é muito mais complicada do que isso.

Mas depois o livro não leva esta exploração às últimas consequências, acabando por se perder no envolvimento com o Ensaio sobre a Cegueira, que surge muito cedo, de forma muito subtil. As comparações entre ambos, ainda que relevantes, não eram o ponto mais importante a transmitir neste livro. Há ali muito potencial para falar de tanta coisa... E Saramago acaba por se restringir a algumas coisas específicas, sem se estender como habitualmente se estende.

Não deixam de ser comparações interessantes. As próprias personagens as fazem, ao dizerem que esta onda de votos em brancos é também uma forma de cegueira, ainda por cima branca, como a anterior. Estão certos, mas não da forma que pensam. As cegueiras têm um pormenor que as torna bastante diferentes: enquanto que a primeira fez com que as pessoas passassem a "ver melhor" as coisas, a segunda é por causa das pessoas "verem melhor" as coisas.

É complicado. Mas enquanto o Ensaio sobre a Cegueira é óbvio e explícito, o Ensaio sobre a Lucidez é subtil e abstracto. Acho que funcionam muito bem os dois enquanto unidade, embora haja um claramente melhor do que o outro.

O final é extraordinário! Ou melhor, a parte final. Extremamente intenso e inesperado. Fiquei honestamente chocado com algumas coisas. E embora não seja o melhor que Saramago alguma vez escreveu, é sem dúvida um excelente livro!

quarta-feira, 22 de abril de 2015

O Dossier Jason Fly (XIII #6)


Argumento: Jean Van Hamme
Arte: William Vance
Tradução: Rui Freire


Opinião: A trama adensa-se, e a viagem de descoberta do nosso protagonista continua em força. É incrível como ao virar de cada esquina há uma nova identidade, um novo pormenor macabro do seu passado, e até uma nova melhor.

XIII é um James Bond amnésico.

Mas... Confesso que este livro já me agradou mais qualquer coisa. Teve um ritmo mais lento, com intrigas mais desenvolvidas, e uma viagem às memórias do passado que ficou realmente bem feita.

O pior é a curiosidade que aqui fica de antenas bem ao alto. Não há espaço para grandes considerações, porque ainda que o ritmo seja lento, a história cativa e cativa bastante.

Continuo a estranhar o azar do tipo. Desgraça atrás de desgraça atrás de desgraça, das piores coisas que consigam imaginar. Nova identidade, nova família... Nova conspiração com mortes pelo meio. É terrível

É o chamado Síndrome do Protagonista, a manifestação literária da Lei de Murphy: tudo o que possa correr mal, vai correr mal. Teve a sorte de conseguir equilibrar as coisas neste livro, criando aqui desenvolvimentos interessantes que conseguiram combater a minha indecisão relativamente à saga. Só depois de ler os próximos é que posso avaliar, mas agora já posso afirmar com toda a segurança que estou a gostar!

segunda-feira, 20 de abril de 2015

Garfield


Autor: Jim Davies

Opinião: Isto na realidade não é um livro. É um conjunto de quatro livros relativamente antigos que tinha por aqui perdidos. Mas serve como opinião à personagem, que é mais do que fantástica. E de onde será que vem o meu fascínio por um gato (um de dois defeitos) cor de laranja (o outro defeito) que é o pináculo da preguiça, da gula, que odeia acordar de manhã, Segundas-Feiras, cães, pessoas, e que tem um fascínio por comida, especialmente por lasanha, para além de ser dono um humor fantástico com pitadas de sarcasmo?

Não estou a ver.

Só que pronto, o sacana do gato é realmente fenomenal. Consegue ser hilariante, incisivo e altamente palerma. As suas características de base já fazem dele uma personagem interessante, e a premissa das tiras de BD em que aparece é mais do que suficiente para me despertar o interesse, mas as piadas e as situações estão tão bem feitas e planeadas (normalmente) que tudo se torna ainda melhor.

O que é que há para não gostar na mediocridade azarenta de Jon, o dono de Garfield? Ou da personalidade pacóvia mas sortuda de Odie? Ou até da fria falta de humor da veterinária de Garfield, por quem Jon se apaixona perdidamente, vá-se lá perceber porquê?

Há muito por onde escolher, e aconteça o que acontecer, muitas gargalhadas para soltar. Os quatro livros que li, praticamente de rajada, têm vários conjuntos de tiras que até estão ligeiramente relacionadas entre si mas que, no geral, são completamente independentes. Não me lembro de ter lido nenhum em que não tenha pelo menos feito um sorriso.

Um dia ainda vou comprar uma colectânea de todas as tiras. Até lá, de certeza que vou reler estes!

sábado, 18 de abril de 2015

A ficção de ideias de Ted Chiang



Correndo no risco de me repetir demasiado, vou voltar a dizer que a escrita de Ted Chiang me agrada bastante. Ou melhor, os seus contos têm-me agradado bastante de uma forma geral. E de cada vez que leio alguma coisa sobre este autor, fico fascinado com a figura peculiar.

Estamos a falar de um dos escritos de FC mais condecorados dos dias de hoje, mas que escreveu relativamente poucas coisas e é brutalmente discreto. É fácil não saber da sua existência. O que é uma pena, porque a sua obra, ainda que pequena, é certamente extraordinária.

A razão está no título desta crónica. Chiang é um verdadeiro autor de FC como já existem poucos; alguém que escreve verdadeira ficção científica na sua vertente de ficção de ideias. Dos que li até agora (e dos outros que conheço), parece-me que a premissa podia ser resumida numa pergunta, normalmente simples mas que apresenta um enorme desvio à norma. O que se segue são enormes reflexões - e até desconstruções - sob a forma de histórias.

Fascinante. A sério. Não sei como é que o homem o faz, mas conseguiu cativar-me de uma forma impressionante nas suas histórias. Ainda só li quatro, das quais apenas comentei três, incluindo uma de que não gostei assim tanto quanto isso. Mas já sei que é um autor que me enche as medidas, sem sombra de dúvida.

Nem sequer preciso de conhecer muito mais para lhe reconhecer o talento. A escrita flui com facilidade, assim como as ideias, as personagens são credíveis, as situações são interessantes, o argumento é bem construído, o ambiente é bem estabelecido, os diálogos não soam completamente idiotas, enfim, é só coisas boas.

Aliás, defeito defeito, só o facto de ter tão pouca visibilidade, o que faz com que não seja fácil arranjar livros dele por cá. Mas eles hão-de aparecer nas minhas estantes, que se forem todos como os que já li... Vai lá vai!

De alta qualidade, assertivos mas diplomáticos, e provocadores. São assim, os contos de Ted Chiang, sem qualquer ponta de dúvida, alguma da melhor FC que por aí anda.

sexta-feira, 17 de abril de 2015

Alerta Vermelho (XIII #5)


Argumento: Jean Van Hamme
Arte: William Vance
Tradução: Rui Freire


Opinião: Não há muitos livros que me consigam deixar tão dividido como os desta saga. Cada volume que leio de XIII me deixa mais convencido de que existe uma linha ténue entre "fantástico" e "medíocre".

O caso deste livro em particular ainda é mais peculiar. O argumento consegue deixar-me com sentimentos contraditórios e aplicados a coisas bem distintas. Por um lado fiquei bastante satisfeito com a evolução da história de uma forma geral. Acho que está a ganhar um ritmo muito bom, tem excelentes momentos de acção e intriga que nunca mais acaba.

Mas por outro lado... Bem, já perdi a paciência para a identidade do protagonista. Parece que em cada livro dão uma hipótese diferente, e depois todas se confirmam, dando assim origem ao homem com o passado mais convoluto de sempre.

A sério, já é apenas ridículo. Agora descobriram que o desgraçado fala espanhol, o que tenho a certeza que significa outro pedaço qualquer da sua vida em que viveu como alguém que fala espanhol. Mais uma identidade, possivelmente mais uma personalidade. Haja paciência.

No entanto, se ignorarmos isso, tudo o resto são sinais de um bom livro. Momentos de perigo a sério, com consequências a sério, intrigas comparáveis aos melindres palacianos da época medieval, mas temperadas com pitadas de Guerra Fria.

E as outras personagens todas têm vários momentos em que brilham. O General Carrington é fenomenal, e já me habituei à Major Jones, que ganha cada vez mais relevância na vida de XIII.

Só que pronto, é difícil de ignorar o facto de que tudo gira em torno deste homem amnésico e das suas quinhentas e oitenta identidades diferentes. Enfim.

quarta-feira, 15 de abril de 2015

The Cabinet of Dr. Caligari




As coisas que vou encontrando pela net de vez em quando surpreendem-me. Mas este filme expressionista alemão conseguiu superar todas as minhas expectativas. Feito há quase cem anos (1920), é mudo, a preto e branco, e tem um paradigma completamente diferente do que é usado nos filmes hoje em dia.

As representações são exageradas, os cenários tendem para o surreal são quase chocantes e a história brinca com os nossos conceitos de certo, errado, real e imaginário de uma forma fantástica.


A história base é a do Dr. Caligari, um hipnotista claramente louco (e parecido com o Penguin de Danny DeVito) que usa um sonâmbulo para cometer uma série de crimes. A realidade, no entanto, pode ser pior... ou melhor. Depende do ponto de vista. E parece que o twist final foi introduzido no filme à revelia dos argumentistas, o que não lhe tira a força, embora possa realmente dar interpretações completamente diferentes à história.

Dividido em vários actos, como se de uma peça de teatro se tratasse, esta divisão lógica dá-lhe um ar de deturpação das clássicas tragédias gregas: tem um prólogo e um epílogo e tudo. Só que em vez de mascarar um actor para o tornar semelhante aos deuses e assim contar uma história divina mais próxima da nossa realidade, The Cabinet of Dr. Caligari exagera as suas para as afastar emocionalmente do espectador e com esse distanciamento permitir uma visão muito mais crítica dos acontecimentos.

A própria exageração dos cenários também contribui para isso mesmo. É claramente o nosso mundo que ali vemos, mas distorcido, mais rígido e fantasiado, mas também mais literal, com sombras e luzes pintadas directamente nos cenários. O filme faz com o que espectador identifique o cenário, mas não deixa que o tome como real. O que ali se vê é uma história que nos está a ser contada.


Isto dá mais força aos acontecimentos e também obriga a uma maior atenção. O que é que diferente do normal? Que pormenores é que são relevantes? Junta-se o mistério de algo desconhecido à excitação de descobrir algo novo, sem se querer perder a história que se desenrola à nossa frente.

Digo-vos que não esperava uma experiência tão interessante nem, de certa forma, tão intensa. Ainda por cima juntava-se a música a tudo isto, também ela arrepiante e complementar da acção e do ambiente, e que me deu uma estranha sensação de imersão à distância. Senti-me não dentro da acção, mas ao lado da acção.

A estrutura lógica também ajuda, pois nunca deixa perder de vista a linha de pensamentos que se está a seguir. Por muito embrenhado que se esteja no filme, a certa altura aparece um ecrã a dizer "Acto x" e somos subitamente atirados para trás e sentados no nosso lugar, conscientes de que queremos saber mais.

O ambiente é estabelecido logo no primeiro acto. Com a música a encaixar perfeitamente, somos apresentados a cenários surrealistas e góticos, com pendor decadente. Até me sinto um bocadinho mais snob depois de escrever a última frase, mas a ideia é mesmo essa. É uma vertente do expressionismo em que se nota a Alemanha, rígida, austera e com emoções tão vincadas que chegam a parecer artificiais.


Snobismos à parte, além de nos apresentar Caligari, o primeiro acto também introduz o narrador e protagonista, Francis, e Cesare, o sonâmbulo mais arrepiante da história do cinema. De olhos extremamente encovados e postura rígida, esta personagem vai-me ficar na memória durante muito tempo, graças à excelente representação de Conrad Veidt (que depois de fugir da Alemanha Nazi fez frequentemente de Nazi em filmes americanos!).

No segundo acto começa a acção realmente a desenvolver-se em força. Dá-se um assassínio, inexplicável na até ali pacífica cidade, e tudo começa a descambar da melhor forma possível. Foi aqui que notei de forma mais intensa o expressionismo, a visão subjectiva da realidade que atravessa todo o filme e que tem um momento brilhante na cena do assassínio.

O próximo acto e meio é puro desenvolvimento, com várias peripécias incluídas e uma qualidade de argumento acima da média. Mas as coisas começam a ficar realmente interessantes na última metade do quarto acto, quando a história dá uma reviravolta sobre si própria, tão bem feita e tão chocante que fiquei a duvidar de mim próprio e quase que andei com o filme para trás para ver se tinha perdido alguma coisa.


No entanto os meus receios foram tranquilizados quando uma personagem começa a alucinar palavras, noutra cena fantasticamente elaborada. E para terminar em beleza, o resto do filme é um clímax alargado em que o contraste com os acontecimentos anteriores é enorme.

Agora, se o que se diz é verdade, e este twist final não era suposto existir, aquilo que tenho a dizer da história é que é um excelente retratar de ideias sobre autoridade, medo, livre-arbítrio e insanidade (numa mensagem que até achei parecida à d'O Último Alienista, de Machado de Assis). Mas contando com o final torna-se mais numa reflexão sobre a nossa capacidade de questionar a realidade e os que nos rodeiam. Há interpretações mais políticas, mas parecem-me exageradas e forçadas, se querem que vos diga.

Por fim, a sensação com que fiquei foi a de ter visto um excelente filme, repleto de pormenores fascinantes e que me deixou uma enorme vontade de ver mais coisas do género. Já sei que o actor que faz de Cesare fez pelo menos outro filme perturbador, no qual fiquei obviamente de olho. O que eu queria mesmo era ver esta qualidade e esta dedicação às ideias em mais filmes actuais. Parece-me que o cinema é um meio que preza cada vez mais o realismo - até os filmes de super-heróis que andam com as cuecas de fora a salvar o mundo são feitos com o intuito de serem realistas - em detrimento das histórias, o que não é necessariamente mau nem necessariamente bom.

Em certos filmes faz todo o sentido. Noutros nem tanto. E um total desprendimento do realismo para melhor explorar uma história é algo que a mim me faz todo o sentido, mas talvez eu tenha tendência para o expressionismo... Enfim, não faz mal, peguem é em vocês e vejam este filme, porque garanto-vos que vale mesmo muito a pena.


segunda-feira, 13 de abril de 2015

Seventy-Two Letters


Autor: Ted Chiang


Opinião: Estou a ficar honestamente espantado com Ted Chiang. A velocidade com que se tornou num dos autores de eleição é tremenda. Para um autor que só escreveu contos e novelas, e em nenhum dos casos numa quantidade tão grande quanto isso, é algo de admirar!

Aquilo que vejo em Ted Chiang é uma espécie de regresso à essência da FC como literatura de ideias. Ele consegue pegar em conceitos relativamente simples e criar uma história com princípio, meio e fim à volta deles.

Neste caso usa um conceito parecido com os poderes místicos das letras do alfabeto hebraico e do mito do golem para contar uma história ao mesmo tempo futurista e victoriana (retro-futurista? dar nomes aos géneros é engraçado) sobre andróides e inteligência artificial. E muito mais!

No começo é fácil de imaginar que a história vai ser essencialmente sobre essas duas coisas, o perigo da inteligência artificial e de robots/golems cada vez mais parecidos connosco, mas Chiang introduz muito mais e guia o leitor através da história com uma mestria extraordinária.

Para terem uma ideia, estes andróides são uma espécie de manequins/bonecos que ganham as suas capacidades a partir do nome que lhes é inscrito no corpo, usando combinações de setenta e duas letras. Diferentes combinações significam diferentes capacidades, desde andar, correr, construir outros autómatos e várias outras tarefas específicas.

Mas depois surge também o problema da infertilidade da raça humana. É que no universo desta história, cada homem tem no seu esperma todos os seus descendentes, quais matrioshkas, tal como na teoria do preformationism. A solução é engenhosa, interessante e as consequências também.

A escrita do tipo é fantástica, assim como a forma como desenvolve a história. Maior do que um conto, e portanto mais próximo da novela, esta história é relativamente detalhada e relativamente extensa, mas nunca perde o interesse. O foco da história até varia bastante, mas isso não me impediu de manter o interesse e querer saber o que ia acontecer seguir.

Todas as ideias/noções/conceitos envolvidos são fascinantes e estão bem desenvolvidos, com o autor a dar a devida atenção a cada aspecto da sua história, sem nunca descurar a escrita nem o storytelling. É um balanço delicado que é muito difícil de encontrar e que acho que Ted Chiang já aperfeiçoou.

Também as personagens estão bem conseguidas, realistas e interessantes. Os diálogos são bons, a caracterização também, as interacções também... Enfim, nada a apontar!

Como já disse, todo o desenvolvimento e a própria conclusão da história são qualquer coisa do outro mundo. Incrível, mesmo. Chiang faz um trabalho soberbo a apresentar os vários lados da questão e a apresentar reflexões interessantes, das várias facções, sobre as adversidades das novas tecnologias, do medo que as pessoas sentem em desafiar aquilo que acham que é "a ordem natural das coisas", e tudo o mais.

E sempre com uma escrita e um ritmo fenomenal. A verdade é que este Ted Chiang cada vez me agrada mais, e vou ter que arranjar as colectâneas de contos dele, sem sombra de dúvida. Felizmente há muita coisa disponível na internet, que aconselho que procurem!

sábado, 11 de abril de 2015

Mais fácil do que uma crónica [5]


Foi-se um dos grandes. Ainda não lhe li nada, mas tenho o The Colour of Magic muito próximo na lista, numa edição fantástica. Para quem não conhece Terry Pratchett, querem saber quão grande era? Reparem aquiaquiaqui, aqui e aqui. O homem deve ter sido um dos poucos escritores a gozar de tanta unanimidade no respeito e na admiração. E não se preocupem, que ainda há um livro novo para sair em Setembro.

Mas pronto. Avancemos, que é o melhor. Aliviem o luto e espreitem coisas interessantes como esta pequena BD, que é das coisas mais hilariantes (e tocantes) que encontrei nos últimos tempos.

Depois percam algum tempo a maravilharem-se com esta entrevista que o David Soares fez ao António de Macedo. É uma autêntica delícia divida numa, duas, três partes.

E para terminar (tenho mais coisas, mas não tenho muito tempo para as apresentar como deve ser), não percam a última iniciativa da Imaginauta, a Biblioteca Fantasma. Estou a gostar da vitalidade desta iniciativa, que insiste em apresentar coisas novas, diferentes e originais. Incansáveis!

Desta vez é tudo, prometo para a próxima tentar fazer algo mais completo. Mas só naquela entrevista de Soares a Macedo já têm pano para mangas...

sexta-feira, 10 de abril de 2015

Se eu fosse um livro



Texto: José Jorge Letria
Ilustrações: André Letria


Opinião: Mais um livro que me foi emprestado por um colega do museu. Este nem sequer conhecia! E gostei, embora não tenha deixado grande impressão.

O texto é simples, demasiado simples para o meu gosto, mas adequado a crianças. Parece-me ser o tipo de livro ideal para explorarem sozinhos, em vez de terem alguém a ler para eles. A grande vitória do livro são as ilustrações, que embora não seja particularmente espectaculares, são porreiras, engraçadas e originais.

Todo o livro se lê como uma homenagem a livros e a leitores, o que me agradou bastante, como devem imaginar. Só que pronto, é um bom livro principalmente pelas ilustrações, que são das mais imaginativas que já vi.

Infelizmente isso não foi o suficiente para me deixar realmente impressionado. Diria que é um livro discreto. Giro e tal, mas para um miúdo ler uma vez e largar. Não é propriamente cativante, não prende, compreendem?

Talvez um texto mais assertivo fosse a solução, se bem que acho que este está bem assim. Enfim, não sei muito bem. Também acho que nem todos os livros têm que ser obras-primas, e este sabe o seu lugar e o seu objectivo, e executa-o bem, de forma competente. Pode não deixar grande marca, mas se calhar foi só a mim. Uma criança talvez delire completamente com isto. Sei que eu, com idade para isto, não iria ficar muito fascinado, mas iria ler atentamente, sim, e iria gostar. Tal como gostei agora!

quarta-feira, 8 de abril de 2015

O Círculo de Pedra (A Idade das Trevas #3)


Autora: A.J.Lake
Tradutora: Maria de Fátima St. Aubyn


Opinião: É uma pena que uma trilogia com algum potencial tenha sido completamente desperdiçada. Os conflitos das personagens são interessantes, a premissa é bem lançada (ainda que pouco original), e o ambiente/cenário está bem construído. Mas tudo isso cai aos pés da inexperiência da escritora e dos erros na construção da própria narrativa, assim como na forma como caracteriza as personagens.

Para começar, nunca há uma caracterização minimamente bem feita. Ou são coisas óbvias e explícitas, como uma personagem dizer que a outra é teimosa, ou simplesmente não existe. De tal forma que as personagens têm acções contraditórias e reacções despropositadas e imprevisíveis a todo o momento. Porque nunca as chegamos a conhecer como deve ser.

Também existem várias linhas narrativas, ainda que na realidade redundem todas na mesma, de uma forma ou de outra. Se não o fazem, são completamente irrelevantes para a história. Mas é que completamente. Aliás, uma das personagens mais interessantes de toda a trilogia aparece num total de meia dúzia de capítulos durante os três livros. E quem diz pessoas, diz dragões, que são tão mal usados que até dá dó.

E os plot twists que são óbvios? Para não estragar eventuais leituras, vou fazer uma comparação que estraga na mesma a leitura para quem tiver dois dedos de testa: imaginem que o tipo que vos bateu na primária e que usava sempre o mesmo colar ao pescoço desapareceu depois de lhe darem um olho negro; agora imaginem que esse tipo é um deus nórdico antigo; e agora que no dia a seguir encontram um miúdo chamado Lobo (em pele de cordeiro? até o simbolismo é óbvio) com um colar estranho e um olho negro? Desconfiam de alguma coisa? Não pois não? Bem me parecia.

Então e o capitão de navio, veterano experiente, que naufraga, quase morre afogado, é resgatado e passa a viver como servente do seu salvador, e que quando confrontado com um deus nórdico antigo quase omnipotente com três metros de altura e envolto em chamas a atacar-lhe a filha, diz "Magoaste a minha menina, seu bruto?" ? Demasiado bom para ser verdade? Concordo. Mas não deixa de ser verdade.

Enfim, estão a compreender o meu sofrimento, não estão? Este livro nem sequer é uma boa conclusão para a trilogia. Segue as regras todas da demanda heróica, mas não existem realmente consequências. A protagonista quase ficou sem braços num incêndio? Que tal água mágica do povo mágico que se recusa a envolver na luta contra o inimigo mágico? O quê, afinal foi outra personagem que teve de se sacrificar? Mas não faz mal, pois não, afinal, ficou para sempre unido à sua amada que julgava perdida! Calma, o outro protagonista ficou cego? Não há problema, que ele tem um dom que devia ter desaparecido, mas afinal não, e que o deixa ver pelos olhos dos outros seres vivos.

No meio disto tudo, quanto tempo é que demora o clímax? Dez páginas. O total das batalhas épicas é cerca de trinta páginas espalhadas por três livros. E isso não seria completamente desagradável, se fizesse sentido... Mas não faz. A autora é capaz de perder capítulos inteiros a descrever as demandas por comida das personagens, mas é incapaz de descrever uma batalha épica como deve ser.

Ou seja, não há salvação possível. Suportei os dois primeiros livros, com a esperança de que o terceiro talvez melhorasse a coisa e desse um final digno à história, mas não. Até me custou a acabar o livro, tive mesmo que me obrigar a fazê-lo, o que não é bom sinal. Eu só gostava que uma autora que vem descrita nas três contracapas como sendo interessada "pelo período da história inglesa conhecido como a Idade das Trevas" tivesse retratado a Idade das Trevas britânica como algo mais do que um sítio onde os nomes soavam meio alemães, havia desentendimentos com dinamarqueses e os deuses nórdicos davam uma ajudinha...

segunda-feira, 6 de abril de 2015

Fight Club (1999)



Não costumo ver um filme antes de ler o livro, mas este é suficientemente icónico para que eu quebre essa regra. Amplamente visto como um clássico e um excelente filme, a minha curiosidade era muita. As opiniões que conhecia ao livro também eram bastante positivas, portanto, porque não?

Infelizmente, grande parte do poder do filme está contido no twist final, que eu já sabia mais ou menos. Felizmente, o filme é bom o suficiente para isso ser quase irrelevante. Claro que há coisas em que reparei que de certeza que não teria reparado caso não soubesse, mas a qualidade do filme é realmente muito elevada.

Confesso que nem sequer estava à espera de encontrar algo tão bom. A própria estrutura do filme é fora do comum, com a excelente narração de Edward Norton sempre ao virar do frame, e um espectáculo visual durante todo o filme que me deixou completamente rendido.


Junte-se a isso a melhor representação de Helena Bonham-Carter que já vi, mais excelentes actuações de Brad Pitt e Edward Norton, e têm aqui excelentes razões para eu ter gostado tanto do filme. Mas há mais!

Todo o filme é bastante intenso, de tal forma que cai naquela corrente de filmes em que TUDO parece carregar um enorme peso e simbolismo. Todas as falas, todas as acções das personagens, todos os cenários... Fica pesado, é certo, mas quando bem feito, como é o caso, também fica espectacular.

O filme começa logo bem, com uma representação perturbadora do desespero da personagem de Edward Norton (cujo nome nunca sabemos!), que para combater as insónias e a depressão em que se arrisca a cair, começa a frequentar grupos de ajuda aos quais não pertence. Estar no meio daquelas pessoas, mais miseráveis que ele, ouvir as suas histórias e partilhar as suas próprias desgraças imaginadas faz com que se sinta melhor.


Pode soar estranho, mas tem lógica. Não só consegue arranjar pessoas com quem se ligar e socializar, como se consegue apoiar nelas para aguentar os seus verdadeiros problemas. E estar rodeado de tanta desgraça permite-lhe relativizar esses seus problemas, o que acaba por ser, de certa forma, refrescante. Dificilmente vão conseguir encontrar uma explicação mais eficaz para o que sente uma pessoa desesperada.

Mas o protagonista tem mais coisas à sua espera. Conhece Marla, que faz exactamente o mesmo que ele nos grupos de ajuda, e conhece Tyler, uma personagem completamente louca e radicalmente idealista. E se Marla é quase uma igual, alguém que se sente como ele e que arranjou exactamente a mesma solução, Tyler é um completo oposto: tão extrovertido quanto o protagonista é introvertido, tão vistoso quanto o protagonista é discreto, tão barulhento e bon vivant quanto o protagonista é silencioso e reservado.

Mais interessante ainda é ver como Marla deixa o seu desespero reflectir-se no seu aspecto: é magra, nervosa, desleixada e impulsiva. Está tão desesperada quanto o protagonista, mas não se preocupa em escondê-lo. Prefere mostrá-lo abertamente, o que entra, obviamente, em conflito com a personalidade do protagonista.


Mas a jóia da coroa deste filme é Tyler e a sua relação com o protagonista. Conheceram-se num avião, por terem ficado sentados lado a lado, quando o protagonista regressava de uma viagem de negócios. Logo nesses primeiros momentos o filme mostra-nos o quão diferentes estas duas personagens são. Praticamente opostos. Mas também dá pistas de como se complementam, de como se dão bem de forma imediata.

Quando o protagonista depois precisa de ajuda, e de um lugar onde ficar, é a Tyler que liga. Estranho? Sim. Razoável? Também. É mais fácil recorrer a um completo estranho do que a alguém conhecido, quando se está desesperado. Assim, o protagonista vai viver com Tyler. E é então que o filme arranca a sério.

Ao viver numa casa a cair aos bocados, com um tipo mais do que meio louco que gosta de fazer coisas como andar de bicicleta dentro de casa, e roubar gordura de clínicas estéticas para fazer sabão e vender de volta às mulheres ricas que vão a essas clínicas (brilhante!), o protagonista vai começar lentamente a mudar. Ou pelo menos a aperceber-se de como as coisas realmente funcionam.


Depois de algum tempo a viverem juntos e a acentuarem o contraste entre ambos, formam o Fight Club do título. A ideia é hardcore para lá do concebível: um grupo de homens que se juntam para andarem à porrada uns com os outros. O espírito de camaradagem que se forma é incrível, e este Fight Club torna-se num autêntico chamariz de pessoas, que revelam desta forma o seu próprio desespero interior, ou a necessidade de libertarem as suas emoções numa forma que consigam compreender como funciona: com os punhos.

O que vem a seguir é uma autêntica montanha-russa narrativa. Sem querer revelar demasiado, o Fight Club torna-se no grupo terrorista mais eficaz de sempre, guiados principalmente por Tyler, mas também pelo protagonista, quando a necessidade surge, mesmo contra a sua vontade, o que fica bem explícito num dos momentos mais poderosos do filme.

Começam a morrer pessoas, tudo começa a ficar mais sério, a luta de Tyler contra o capitalismo e a sociedade em que vivemos começa a ganhar pernas e a andar praticamente sozinha, ao ponto de continuar depois de ele simplesmente desaparecer.


Isto leva à conclusão do filme, com a grande revelação a ter um enorme impacto na forma como nós - e o protagonista - vemos tudo o que se passou até ali, mas a não significar o fim do filme, que consegue continuar de forma natural para lá desse clímax, com o protagonista a lutar com os seus próprios demónios até os vencer... Rendendo-se. O verdadeiro final, com o verdadeiro clímax, é espectacular, e deixa as coisas suficientemente em aberto para interpretações pessoais.

Para mim ficou bem claro que o Jorge tinha razão quando disse que o livro em que este filme se baseia era grunge. Porque se for minimamente parecido com o filme (e parece que este está razoavelmente fiel, pelo menos na temática e no ambiente), não tem outra hipótese. E o filme, pelo menos, é fantástico. Uma gigantesca ode ao carácter destrutivo da depressão e do desespero, e uma brilhante reflexão sobre a necessidade de libertação emocional. E se ainda não o viram, por favor façam-no, porque vale mesmo muito a pena!